24 abril, 2024

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Como a China poderia ter chegado às Américas sete décadas antes de Colombo

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“Quando Cristóvão Colombo se lançou à travessia dos grandes espaços vazios a oeste da Ecúmene, havia aceitado o desafio das lendas. (….) O mundo era o Mar Mediterrâneo com suas costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes portugueses asseguravam que os ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às vezes arrastavam troncos curiosamente talhados, mas ninguém suspeitava que o mundo seria, logo, assombrosamente acrescido por uma vasta terra nova.”

É assim que o uruguaio Eduardo Galeano começa seu clássico As Veias Abertas da América Latina, livro publicado em 1971 que narra a história da região e seu lugar no mundo.

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O escritor, assim como toda a historiografia ocidental, parte da primeira viagem do navegador genovês — entre o porto de Palos, na região da Andaluzia, na Espanha, e a Isla de Guanahaní (atual Bahamas), onde sua frota desembarcou na manhã do dia 12 de outubro de 1492 — para contar sobre o encontro inaugural entre aqueles que já habitavam as ilhas do Mar Caraíbas, os taínos, e exploradores vindos de outras partes do planeta.

Para os primeiros, aquele contato inédito marcaria o início de toda a história da invasão europeia e da posterior colonização dos territórios e povos existentes deste lado do globo, enquanto, para os segundos, seria o marco inaugural de uma narrativa hegemônica até hoje em torno de uma “descoberta da América”.

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O encontro é narrado a partir de Colombo em coletâneas respeitadas, como na História da América Latina organizada pelo historiador britânico Leslie Bethell ou nos volumes de Historia de la Conquista, escritas pelo estadunidense William Prescott na primeira metade do século 18.

Com isso, possibilidades alternativas – como a de que os vikings da Groelândia teriam assentado colônias no litoral do Canadá ou de que a “grande terra, fértil e de clima delicioso” supostamente encontrada (e descrita) por um capitão fenício do outro lado do oceano por volta de 500 a. C. era a América — ficaram sempre às margens.

O 12 de outubro, por sua vez, é lembrado até hoje nos lugares envolvidos na trama: na Espanha, por exemplo, um decreto do General Francisco Franco em fevereiro de 1958 o batizou de “Dia da Hispanidade”. Nos anos anteriores, porém, ele já era chamada pelos espanhóis e pela maioria dos países da América Latina de “Dia da Raça”.

Foi somente no início do século 21 que os governos latino-americanos — imbricados nas discussões pós-coloniais — decidiram rebatizar o 12 de outubro: “Dia da Descolonização” na Bolívia, “Dia do Respeito pela Diversidade Cultural”, na Argentina, “Dia da Resistência Indígena” na Venezuela e na Nicarágua e “Dia dos Povos Originários e do Diálogo Intercultural” no Peru, para mencionar alguns. É só nos Estados Unidos que a data sempre levou o nome do navegador de Gênova: Columbus Day (“Dia de Colombo”), obra dos migrantes italianos que já viviam no país no final do século 19.

A ‘descoberta’ chinesa

China foi tecnologicamente mais avançada que a Europa durante séculos — Foto: Getty Images via BBC
China foi tecnologicamente mais avançada que a Europa durante séculos (Fotos: Reprodução/BBC)

Há quase duas décadas, no entanto, uma história alternativa da “descoberta” das Américas se espalhou: a de que, ao contrário do consenso historiográfico, frotas encabeçadas por dois almirantes chineses, Zhou Man e Hong Bao, haviam navegado da África até a foz do Rio Orenoco, na atual Venezuela, descendo depois por toda a costa do continente até o do Estreito de Magalhães, ao sul da América do Sul, ainda no ano de 1421 – portanto, 71 anos antes da viagem de Cristóvão Colombo. Eles tinham sido treinados e eram liderados pelo grande navegador chinês daquela época: o eunuco muçulmano Zheng He.

A tese, cujas versões já existiam antes, ficou famosa por meio de dois best-sellers escritos pelo ex-comandante da Marinha britânica Gavin Menzies no começo dos anos 2000: 1421: o ano em que a China descobriu o mundo (Bertrand, 2006) e Who Discovered America? The Untold History of the Peopling of the Americas (“Quem descobriu a América? A história oculta dos povos das Américas”, sem tradução).

Apesar da tese ser fortemente criticada pela historiografia pelo trato pouco ortodoxo com as provas históricas, a discussão permanece em aberto entre especialistas do mundo todo. Alguns deles afirmam hoje que, ainda que os chineses não tenham, de fato, navegado pela costa americana antes de Colombo, é possível dizer que eles reuniam meios para fazê-lo.

“Tecnologicamente falando, a China tinha condições de chegar às Américas ou outras terras, e até não podemos descartar que isso tenha acontecido: por um lado, muitos navegadores podem ter chegado nelas e morrido no regresso ou sequer tenham feito registros das descobertas No entanto, a questão é que a tecnologia sozinha não responde essa pergunta”, explica Rita Feodrippe, pesquisadora da Escola Naval de Guerra e estudiosa da marinha chinesa.

“Os europeus saíram para explorar o Atlântico porque o Mediterrâneo estava fechado e eles precisavam encontrar novos mercados. A China, ao contrário, tinha um comércio terrestre muito bem estabelecido com a África, o que hoje chamamos o Oriente Médio e mesmo com a Europa. Como há havia um relativo sucesso comercial, econômico, cultural e migratório, não haveria necessidade de buscar novas terras — mesmo com a tecnologia disponível”, completa.

Para Vitor Ido, pesquisador do South Centre, em Genebra, na Suíça, a reação à possibilidade de Colombo não ter sido o primeiro a navegar pelo continente americano também diz muito sobre a hegemonia da narrativa europeia.

“Quais são as razões que parecem tornar até inconcebível para a maioria de nós o reconhecimento de que a China poderia ter uma superioridade tecnológica em relação aos europeus naquele período? Essa pergunta mostra nossa maneira de pensar a história”, questiona ele.

O livro polêmico de Gavin Menzies

Menzies, que morreu há cinco meses ainda em meio às críticas dos historiadores, sustentava que, no começo do século 15, por volta de 1403, o imperador chinês Yongle (terceiro da Dinastia Ming) deu a Zheng He a missão de executar a maior volta ao redor do globo que já fora feita até então. O objetivo era ir “até o fim do mundo coletar tributos dos bárbaros espalhados pelo mar”.

Ele deveria treinar navegadores para saírem pelos oceanos enquanto, em paralelo, centenas de ba chuan, navios de dimensões nunca vistas, eram construídos pelo império. Foram eles que, nos anos seguintes, empreenderam seis viagens pelo planeta travando contatos com povos distintos e alcançando terras cujas existências eram desconhecidas. O único lugar ausente do trajeto foi a Europa.

As navegações teriam continuado se, em 1424, Zhu Di não tivesse morrido, interrompendo o projeto de expansão e o contato com outras civilizações — uma sétima viagem aconteceria em 1433, depois da sua morte, e uma oitava frota chegou a partir depois, mas sem alcançar mar aberto.

Menzies ainda escreve que, ao longo das outras viagens daquele mesmo período, almirantes liderados por Zheng He também pisaram no que hoje é a Austrália — 350 anos antes da expedição britânica liderada pelo capitão James Cook, que chegou à praia de Kamay Botany Bay (hoje um parque nacional em Sydney) em abril de 1770.

Como a maioria dos mapas originais chineses foram destruídos por oficiais do império anos após a morte de Zhu Di, os que restaram apresentam apenas viagens menores feitas à Índia e às outras ilhas do Sudeste Asiático, por exemplo.

Os desenhos referentes aos anos de 1421 e 1423 — quando os barcos de Zheng He teriam ido mais longe — podem ser acessados agora, de acordo com Menzies, apenas por meio de reproduções, como uma encontrada por ele feita pelo cartógrafo veneziano Zuane Pizzigano, onde se poderia ver as ilhas de Guadalupe e de Cuba, as costas americanas, a Austrália e até a Antártica – e que provavelmente fora usado pelo próprio Colombo para chegar às Antilhas.

Décadas depois, em 1512, o cartógrafo turco Piri Reis projetara o mapa mundi incluindo não apenas as Américas, mas detalhando o terreno da Patagônia, ao sul do continente. Ele só fora possível, segundo Menzies, pelas informações obtidas décadas antes pelos chineses e já espalhadas pelos territórios da Ásia.

Nessas viagens ausentes dos registros originais, os navios liderados por Zheng He teriam não apenas cruzado o Cabo da Boa Esperança antes de Bartolomeu Dias, passado por Cabo Verde, na África, pelas ilhas dos Açores, hoje território português, pelas Bahamas (Caribe) e pelas Malvinas, estabelecendo inclusive algumas colônias onde hoje são a Austrália, a Nova Zelândia, a Califórnia e a ilha de Porto Rico (EUA) e o México — para onde teriam levado os primeiros cavalos.

Além disso, supostamente foram pioneiros no cultivo de galinhas na América do Sul e na criação de um comércio de diamantes encontrados na Amazônia com o restante do mundo.

Os livros do ex-comandante naval são questionados principalmente pela fragilidade metodológica. “As conclusões extraordinárias do autor são validadas apenas por suas experiências pessoais e pelo relato que ele traz de sua luta para chegar a elas. Esse método é o que torna possível atrair tantos leitores que, de outra maneira, jamais abririam um livro de 500 páginas cujo assunto são os empreendimentos marítimos chineses e a exploração europeia”, diz Robert Finlay, professor emérito de História Mundial da Universidade de Arkansas, nos EUA.

Há ainda críticas às provas utilizadas por ele: em uma extensa análise da obra de Gavin Menzies, o historiador e oficial da Marinha portuguesa, José Manuel Malhão Pereira, e o professor Jin Guoping, especialista em relações lusitanas na China, apontam incoerências naturais que vão das correntes de ventos às coordenadas astronômicas usadas pelos almirantes chineses, passando por erros graves de análise cartográfica — o mapa de Piri Reis, por exemplo, descreve ilhas da África, não do Caribe. Segundo eles, o autor dos best-sellers não apenas tentou “enganar os leitores” como deturpou diversas provas históricas para construir sua argumentação.

Mas há reações ainda menos amistosas, como um professor de Cingapura que, na ocasião da “Exibição 1421”, organizada na marina da cidade-Estado em 2005 pelo próprio Menzies a convite do governo local, chamou o livro de “lixo”.

A tese de que os chineses chegaram às Américas antes de Colombo, no entanto, nunca morreu: em 2006, um advogado chinês chamado Liu Gang afirmou à imprensa internacional que tinha encontrado um objeto que a comprovava: um mapa com os cinco continentes do planeta feito em 1763, mas com uma anotação no verso dizendo ser uma reprodução de outro mapa, este de 1418.

Comprado por um valor irrisório em uma livraria de Xangai anos antes, Gang dizia que passara aquele tempo estudando a cartografia com outros especialistas — e chegara a uma conclusão parecida à de Menzies: “A informação contida no mapa pode mudar a história”.

Em 2014, outra evidência das descobertas marítimas chinesas: durante uma expedição à remota ilha de Elcho, no chamado Território Norte da Austrália, uma equipe de arqueólogos do país encontrou uma moeda da Dinastia Qing prensada entre os anos 1735 e 1795.

À época, Mike Owen, chefe do trabalho de escavação, chegou a dizer que o objeto aumentava os já fortes indícios de que chineses haviam feito contato com aborígenes da região antes de Cook.

Para Júlia Rosa, que fez mestrado em Estudos Chineses Contemporâneos na Universidade de Renmin, em Pequim e é co-fundadora da plataforma Shūmiàn, a grande questão desse debate também gira em torno das possibilidades chinesas no período.

“Por um lado, a dinastia estava envolvida em projetos de expansão e de exploração de novos mercados para comércio e, por outro, tinha tecnologia para isso, já que a literatura afirma que os navios chineses daquela época eram melhores que os italianos. Assim, se eles soubessem que poderia haver uma terra desconhecida do outro lado do mundo, é possível que teriam tentado alcançá-la”, explica.

“Além disso, há certo consenso de que a China era mais avançada do que a Europa tecnologicamente até o século 14 aproximadamente”, completa.

Rita Feodrippe argumenta que, de fato, a indústria naval da China era uma das mais avançadas do mundo até antes do século 15. “Há muitas fontes históricas que mostram que a China chegou ao século 15 com programas e políticas específicas para seu desenvolvimento naval à nível local, isto é, queria navegar pelo Oceano Pacífico e fazer trocas comerciais com os povos do Sudeste Asiático”, explica ela.

O ‘retorno’ de Zheng He

Hoje a China tenta ampliar sua influência no mundo através de investimentos em infraestrutura — Foto: Getty Images via BBC
Hoje a China tenta ampliar sua influência no mundo através de investimentos em infraestrutura (Foto: Reprodução/BBC)

Há três anos, o nome de Zheng He voltou a sair da boca de um governante chinês: foi durante o discurso de abertura do atual presidente, Xi Jinping, no primeiro Belt and Road Forum (BRF) — evento em que delegados de mais de uma centena de países se reuniram em Pequim em 2017 para discutir projetos de infraestrutura financiados pela China pelo mundo.

Na ocasião, Xi Jinping afirmou que Zheng He foi um dos “pioneiros chineses que entraram para a história não como conquistadores, com navios de guerra, armas ou espadas. Ao contrário, eles são lembrados como emissários amigáveis em caravanas de camelos e navegando em navios repletos de tesouros. De geração a geração, esses viajantes das rotas da seda construíram uma ponte para a paz e cooperação entre o Ocidente e o Oriente”.

Segundo Júlia Rosa, a menção do presidente chinês não foi trivial: em um contexto de disputa geopolítica e de reafirmação no cenário global, com a construção de portos e estradas em países da África, da Ásia e da América Latina, o navegador do século 15 coloca uma das dinastias mais gloriosas da história da China em diálogo com as pretensões atuais do Partido Comunista – que governa o país desde a metade do século 20.

“Como na dinastia Ming havia uma participação intensa da China para além do seu território, não necessariamente em conflitos bélicos, mas em trocas comerciais com seus vizinhos, Zheng He é alçado como a figura que ilustra as pretensões da China de hoje: se engajar com outras populações por meio de trocas positivas, de ganhos mútuos, de comércio pacífico”, explica.

“Assim, Zheng He é um exemplo usado para dizer que a China já realiza esse tipo de contato com outros povos há muito tempo”, completa Rosa.

Vitor Ido, do South Centre, conta que a retomada de símbolos nacionais, como Zheng He, também faz parte de outra ambição chinesa. “O país tem feito isso também com Confúcio, por meio do Instituto Confúcio, para expandir o chamamos de soft power, mesmo que o governo tenha uma interpretação muito específica do confucionismo, assim como da história do Zheng He. Esse processo todo, de qualquer forma, me parece muito importante na China contemporânea”.

Para Rita Feodrippe, o navegador chinês é o símbolo perfeito de um país que, nas geopolítica atual, enxerga no mar o principal caminho para seu desenvolvimento econômico. “Desde a entrada da China na OMC, em 2001, houve uma ressignificação do mar. Eles não queriam depender de empresas de navegação ou usar rotas marítimas que são controladas financeiramente por potências ocidentais e, para isso, desenvolvem toda uma indústria naval e seu entorno para garantir o principal: importar e exportar muito e da forma mais barata possível. A associação com Zheng He está aí: era um chefe naval que liderava embarcações com capacidade para levar grandes mercadorias, mas não exércitos, para outros lugares do mundo”, analisa.

Hoje, segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês), o maior comércio bilateral do mundo é o fluxo de mercadorias pelo mar que sai da China em direção aos Estados Unidos, que movimentou US$ 563 bilhões (R$ 3,1 tri) ao gigante asiático em 2018. Por outro lado, o relatório aponta que 60% do comércio asiático é intrarregional, também liderado pela China. Desde a época de Zheng He.

Fonte: BBC

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