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A cantora baiana Karina Buhr, de 45 anos, fez um desabafo em seu perfil na rede social Medium afirmando ter sido estuprada várias vezes por Dito de Oxóssi, babalorixá e vocalista do Afoxé Ylê de Egbá, que morreu no último dia 15, no Recife, após uma sofrer uma parada cardiorrespiratória, aos 57 anos.
No desabafo com o título de “Ele morreu, e o inferno ressuscitou pra mim” (leia abaixo, na íntegra), ela narra com detalhes os abusos sexuais que sofreu do músico e o motivo de só revelar os estupros agora.
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“Por que expor por estupro um homem que acabou de morrer? Porque eu quase morri nas mãos dele. Por que não denunciou quando estava vivo? Por medo de morrer, medo de machucar minha mãe”, inicia ela, que no texto também cita os casos noticiados de abusos comedidos pelo médium João de Deus.
“Certamente ouvirei que não estou respeitando a família num momento de dor. Respeito sim. Respeito a dor de cada um deles e de todos que consideravam Dito como pai. E peço que também respeitem a minha dor, que já dura mais de 20 anos. Ele, como babalorixá, me chamava de filha e usou sua força e autoridade dentro desse contexto pra escravizar minha mente e meu corpo”, continua.
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‘Me mandou ajoelhar, abriu a calça e botou o pênis na minha boca’
Mais adiante, ela conta como aconteceu o primeiro estupro, na casa dela, no ano 2000:”Ele me levou pro quarto, me mandou ajoelhar no chão e agiu como se fosse começar uma daquelas sessões de conselho. Achei estranho o pedido pra ajoelhar mas fiz. Ele então abriu o cinto, abriu a calça e botou o pênis na minha boca”, narra.
“Eu fiquei aturdida, paralisada de medo, de culpa, de vergonha, embora eu estivesse sendo vítima de algo que nem sabia ainda o que era. Não entendi nada, estava tudo errado de novo e de novo eu não ia conseguir reagir, aos prantos, desesperada. Eu estava totalmente dominada por essa situação e me sentia sem domínio sobre minha mente nem meu corpo. Era uma entidade com a qual eu convivia há um tempo e tinha devoção”.
‘Me ecostou na mesa e me esturprou com penetração de novo’
Segundo o relato, o segundo abuso teria acontecido na casa de Dito, em 2001: “Enquanto falava e dava conselhos, abriu a calça. Me encostou na mesa e me estuprou com penetração de novo, eu de novo chorando, na sala da minha mãe, com todo medo, culpa e tristeza aumentados por conta disso”.
Logo depois que ele enfiou consegui reagir, empurrei ele (e fiquei com um peso estranho demais, achando que fiz algo muito errado e que seria punida) e ele tirou de dentro. Poucos minutos depois alguém entrou em casa. Minha vontade era de me matar. Saí de casa olhando pro chão e com uma culpa indescritível”, descreveu.
A terceira vez, segundo Karina, foi no carro dele: “…Botando o pênis pra fora enquanto dirigia o carro, puxando minha cabeça e enfiando na minha boca pra que eu repetisse tudo aquilo e falando que eu tinha me tornado mais forte, que minha mente estava tranquila. Eu estava destruída por dentro. Isso não lembro quando foi, só que foi depois das outras duas vezes”, contou ela.
Veja o relato, na íntegra:
Ele morreu, e o inferno ressuscitou pra mim
Por que expor por estupro um homem que acabou de morrer? Porque eu quase morri nas mãos dele.
Porque precisamos falar sobre subnotificação de casos de estupro, porque é muito mais normal do que dizem as estatísticas oficiais e porque o que a sociedade diz pras mulheres, às vezes com todas as letras, às vezes nas entrelinhas é: não denuncie, toque sua vida, deixe isso pra lá, você vai correr perigo!
Nós já corremos perigo!
Se alguém rouba um carro ninguém diz pra não denunciar porque o ladrão é perigoso, o ladrão sabe onde é sua casa. Isso só acontece em casos de estupro.
Por que não denunciou quando estava vivo? Por medo de morrer, medo de machucar minha mãe.
Certamente ouvirei “mas ele morto não pode se defender”, ao que respondo: quem não pôde se defender fui eu!
Certamente ouvirei que não estou respeitando a família num momento de dor. Respeito sim. Respeito a dor de cada um deles e de todos que consideravam Dito como pai. E peço que também respeitem a minha dor, que já dura mais de 20 anos. Ele, como babalorixá, me chamava de filha e usou sua força e autoridade dentro desse contexto pra escravizar minha mente e meu corpo.
Ele está sendo homenageado como grande representante e guardião da cultura pernambucana (cada reverência que vejo é uma facada que sinto dentro) e isso precisa ser questionado. Babalorixá cuida, quem pratica extorsão, coação e estupros não está zelando por orixá algum, por pessoa alguma.
Há um ano decidi que finalmente denunciaria Dito de Oxóssi (Expedito Paula Neves), babalorixá pernambucano, chefe do afoxé Ylê de Egbá, por estupros. Houveram outros crimes mas o único que ainda seria possível denunciar, por conta do tempo, era esse.
Na sede do MP-PE de Olinda prestei depoimento para a promotora Henriqueta de Belli, que me ouviu falar por quase 3 horas, sem intervalo. Depois ela me enviou um termo de declaração pra que eu assinasse, pra dar entrada no processo, mas acabei nunca fazendo isso, por conta do estado em que minha mãe ficou, com medo dele, do que ele pudesse fazer.
Acabei achando que estava curada de tudo mas, no fundo, eu estava esperando que alguma outra mulher denunciasse e aí eu iria junto com ela. Mas ele se foi antes (15/12/2019) e fiquei com um grito entalado na garganta. Desde domingo só faço chorar, adoeci instantaneamente, uma sensação de impotência, de injustiça. Há dois dias mal consigo ficar em pé, a cabeça explodindo, a garganta inflamada e fechando de asma. E isso não é um problema só meu, é de todos nós! Precisamos falar sobre isso!
Descobri que a expressão “gosto amargo na boca” vem dessa sensação real. Minha boca, há dois dias, sinto como se estivesse o tempo todo com um gole de líquido muito amargo e está mesmo, é meu fígado espumando de raiva e tristeza profundas. Não vou mais guardar isso.
Segue um depoimento baseado no que escrevi há um ano e tornaria público durante o processo contra ele, pra atuar em duas frentes, o assunto ser discutido e também ficar mais protegida de uma possível vingança. Não estou publicando o texto na íntegra porque preferi deixar menor, tirar coisas que iriam me expor ainda mais e tirar também os nomes de várias pessoas que eu citei e várias situações que envolveram elas. Preferi deixar só o meu nome e o de quem me violentou.
São Paulo, 14 de dezembro de 2018
Esses dias liguei a tv em Entrevista com Bial e uma mulher denunciava algum guru religioso, que só no próximo bloco vim a saber que era João de Deus. Nas primeiras frases que ouvi dela comecei a chorar copiosamente, um choro profundo e que ia limpando alguma coisa em mim, tirando camadas grossas e duras que estavam escondendo uma dor muito grande, um processo de escravidão mental e abusos físicos que vivi, por 4 longos anos, entre 1998 e 2002, em Recife.
Enquanto a holandesa Zahira Lieneke Mous falava palavras que pareciam minhas, via que tudo estava ainda gritando dentro da minha cabeça, com um prato de macarrão ao molho de lágrimas no colo e os olhos vidrados na televisão. O que eu achava que estava enterrado não estava. Não tornei público porque tinha medo dele, tenho ainda mas me sinto forte. Me preocupava também com minha mãe.
Derretia pelos meus olhos o desespero por eu ter me abandonado tanto tempo. Quando fui parar nesse lugar eu buscava alegria, cura e proteção em algo com que me identificava e de onde emanava uma força imensa. Como toda aquela força poderia vir de algo ruim? Uma coisa me fazia muito feliz: tocar tambor.
Eu já tocava desde 1994. Toquei no Piaba de Ouro (saí de baiana mas tocava também. Mulher não podia tocar no maracatu de Salustiano, mas como no carnaval as jornadas eram longas eu acabava tocando sempre que um homem parava um pouco) e no Estrela Brilhante do Recife. Eu queria ser ogã alagbê (pessoa que toca nos ritos religiosos) no candomblé mas era impossível, por eu ser mulher.
Conheci o Ylê de Egbá em 1998, na Cantina Z4, colônia de pescadores em Olinda. Já tinha ouvido falar de uma festa linda que acontecia aos domingoos. Passei a conhecer melhor e tocar o ijexá e entrei pro grupo.
As apresentações eram em Olinda todos os domingos e eventualmente em outros lugares da cidade e em outras cidades também. Em Olinda eu me sentia em casa desde o começo dos anos 90, muita gente achava que eu era de lá, lá estavam o shows da banda Eddie (que eu de fã assídua virei integrante anos depois), o carnaval, as rodas de côco de dona Selma e de Aurinha do Côco. A sede do Ylê de Egbá era no Alto Zé do Pinho, mesmo bairro do Estrela Brilhante. Quando entrei no Estrela a sede era embaixo, em Casa Amarela, perto do mercado, depois mudou pro Alto e eu também me sentia em casa ali e nas imediações, onde o Estrela fazia muitos arrastões.
Entrei no afoxé nesse contexto, tudo era muito bom, os momentos que eu tocava no Estrela Brilhante eram maravilhosos. Mas minha saída do Estrela foi brusca, sem dar satisfações. Pela minha entrada no afoxé e o jeito que Dito fazia as coisas fui impelida a simplesmente abandonar o Estrela. Da noite pro dia me vi totalmente dominada por uma estrutura que não me permitiria muito viver fora dela.
Do Encantamento ao Medo
No começo pareceu tudo muito natural mas com o tempo comecei a perceber que tinha algo de errado. Era difícil admitir que tanta maldade pudesse vir tão bem embalada em pacotes de beleza, música, interação, luta contra o racismo, exaltação dos orixás, da natureza. E eu sentia a força dessa natureza.
Num primeiro momento de cura passei a refletir sobre as pessoas cegas de devoção a líderes autoritários. Mas isso é um outro capítulo, processos que eu criava, pra me tirar o peso, pra tentar entender como pude me machucar tanto e deixar que me machucassem daquela forma. Eu me sentia culpada.
Zahira, conversando com Bial, falava exatamente o que eu tinha sentido e não conseguia contar pra ninguém, achava que nunca falaria aquelas frases que ecoavam na minha cabeça e que ela falou ali, na bucha. Aquelas frases eram muito minhas e ouvi-las de outra pessoa trouxe à tona algo que eu achava que tinha superado.
Que o que eu vou falar aqui não sirva de munição pra ninguém desvalorizar ou atacar candomblé e umbanda. O que vivi poderia ter acontecido num templo, numa igreja, qualquer outra casa religiosa.
Dito era uma figura imponente, poderosa e dominava a prática de atrair pessoas pro seu convívio, pra ser seu público e do afoxé. Ele não era um consenso, eu já tinha ouvido falar que era violento e que ostentava feitos verdadeiros e inventados. Mas nada disso me abalava, eu acreditava em tudo o que ele falava e, em pouco tempo, passaria a fazer tudo o que ele mandava.
Eu estava encantada por poder tocar atabaques, mesmo que “só” na rua e não num terreiro, como era minha vontade. Tudo era muito intenso, em pouco tempo passei a ir quase todos os dias pra sede do afoxé, casa de Dito. Eu ia ouvir as histórias que ele contava, ia tocar, tinha reunião espiritual, cerimônia religosa. Cheguei a passar um tempo indo todos os dias. Depois vieram os pedidos constantes de dinheiro que eu teria que conseguir em tempo recorde. Nas reuniões espirituais Dito incorporava as entidades Malunguinho, Ritinha, Mestre Paulo e depois descobri, de maneira nada agradável, que existia também Aninha.
Nunca questionei se eram realmente entidades, tinha certeza que sim. Entrei nessa rotina e não me concentrava em mais nada meu. Me abandonei completamente, minha vida estava em segundo lugar, em primeiro vinha o Ylê de Egbá.
Sequestro da Mente
Foi nos búzios de Dito que descobri que sou filha de Oxumarê. Lá descobri as comidas, os toques, aprendia sobre a dedicação que se precisava ter com o orixá, o respeito por uma nova família que se ganhava no axé. Mas isso tudo estava custando minha energia vital e muito dinheiro, o que eu tinha e o que eu não tinha, o que eu teria obrigação de conseguir, pedindo emprestado, fazendo dívidas enormes, abrindo mão de qualquer coisa minha em nome do que Dito pedia. Coações, extorsões diárias, por anos, me mantiveram presas àquela estrutura que me escravizava o corpo, a mente e a alma. Eu via pessoas se aproximarem dele e se afastarem mas eu não conseguia me afastar.
Eu era estimulada, de forma insistente, com muita intensidade a incorporar na prática os arquétipos do meu orixá e ir buscar e conseguir o ouro, o dinheiro. Eu pagava muitas coisas, do tecido pra fazer roupas do afoxé a material de construção pras reformas infindáveis da casa. Sempre tinha pedidos de entidades e eu teria que comprar colares e pulseiras de ouro, anel de pedra tal, chapéu original de tal marca, bengala da Nigéria…
Chegou a um ponto em que eu doava todo e qualquer valor que me viesse pelo meu trabalho, embora eu trabalhasse cada vez menos. Eu não tinha a quantidade de dinheiro necessária pra bancar tudo aquilo então comecei fazer o que nunca tinha feito antes na vida, pedir emprestado freneticamente, bolar planos, enganar minha mãe e meu pai. E nada disso era pra mim.
O sequestro da minha mente, não consigo falar de outra forma, era fomentado e fortalecido a cada dia, a ponto de eu não ter mais noção do que era certo e errado, apesar de esconder que eu mantinha tudo aquilo, por vergonha, por saber que as pessoas não entenderiam. Meus amigos, família, todos sabiam do afoxé e alguns percebiam que eu estava com um discurso estranho, defendendo Dito com unhas e dentes, mas não desconfiaram que isso também envolvia pressão mental e dinheiro.
Eu tinha medo que Dito e as entidades soubessem se eu contasse. Eu tinha medo do meu próprio pensamento. O fato de eu questionar mentalmente que aquilo tudo estava errado me fazia ter medo de mim, das minhas ideias e a reação acabava sendo me doar ainda mais pra aquela estrutura macabra.
Quantias enormes de Dinheiro
Dito telefonava, sempre usando uma entidade ou orixá como motivo pra eu conseguir, em tempo mínimo, quantias de dinheiro e eu, cegamente, obedecia. Era um estado de tensão permanente, sabia que cumprida uma missão logo apareceria outra, provavelmente mais difícil. Eram quantias altas. “Ritinha pediu dinheiro para as prestações atrasadas de um acordo feito e precisa de 3 mil reais até amanhã meio dia”. Eu cheguei a desconfiar que era dívida com agiota mas me punia por pensar isso.
Certa vez consegui com meu pai 5 mil reais “pra gravar um disco” (depois de muita conversa e promessas de que pagaria num prazo) e entreguei no mesmo dia nas mãos de Dito. Nesse dia ele me telefonou umas 6h da manhã, “Malandrinho precisa de 5 mil reais até às 18h de hoje. Ele não pode falar para o que é”. E lá ia eu, assustada e tensa, atrás da fortuna. Meu pai passou anos me cobrando esse disco que nunca veio e também a devolução prometida. Dói ele ter morrido sem eu ter esclarecido isso.
Era uma pressão contínua pelo dinheiro, pra quem pedir, que trabalho fazer. E assim eu acumulava dívidas e minha cabeça cada vez mais em parafuso. Meu esforço não era pra mim e eu tinha que dar tudo o que conseguisse, pois assim “as forças” queriam.
Racionalmente eu não via ali os princípios de vida que eu tinha, havia um discurso de generosidade que na prática não existia. Mas no decorrer dos acontecimentos eu não entendia mais o que era certo e o que era errado, tamanha era a pressão psicológica.
Tambores, Carro, Roupas
Em 2000 fiz uma turnê internacional com a Comadre Fulozinha e na viagem comprei tambores pra Dito, não pra mim. Um deles foi um batá que comprei no Canadá e ele passou a dar entrevistas falando que era instrumento de fundamento do Ylê de Egbá.
As coisas que eu queria pra mim eu acabava dando pra ele, é como se fosse uma obrigação mesmo, como se eu fosse ser punida por alguma força maior caso não o fizesse. E isso não era racionalizado, era uma sensação quase física de obrigação, era como um instinto, um reflexo natural.
Meus tambores (os que já eram meus de antes) estavam todos de obrigação (quando tambores são entregues a orixás ou entidades pra serem usados em rituais), dentro do quarto de santo (lugar onde ficam os altares e objetos de culto) e pra eu usar nos meus shows precisava pedir permissão.
Às vezes eu era ridicularizada por ele, também por algumas entidades, que não sei mais quando era entidade e quando não era, ou se houve algum dia alguma entidade ali. E mesmo hoje, enquanto escrevo isso, sinto medo dessa desconfiança, entro em conflito com minha mente. Eu era elogiada (Dito contava pras pessoas que eu era “ogã por natureza”, falava com orgulho que eu era “filha de Bessein” etc) e menosprezada, num ciclo de violência mental assustador, que me mantinha escravizada, que me tirou a noção da realidade. Me sentia culpada e tinha medo dessa sensação, afinal eu devia mesmo era agradecer a sorte dessa convivência ancestral e tão bonita, a proximidade com meu orixá (isso sempre foi muito forte e tornava tudo ainda mais confuso. Como uma coisa que me trazia tanto conforto espiritual poderia estar ligada a algo ruim?).
O carro vermelho, que não lembro a marca, não entendo de carros, todo mês Dito pedia pra eu pagar a prestação, até que um dia deixou o carnê comigo e eu já pagava como obrigação minha mesmo, todo mês. E eu não tinha carro, até hoje não tenho, nem em casa minha mãe tinha.
Eu não tinha mais roupas pra vestir, usava o que minha irmã e minha mãe separavam pra doação. Lembro de uma vez estar na avenida Dantas Barreto de sandália, a sandália quebrar e eu voltar pra casa (perto da Ponte da Torre) a pé e descalça, pois não tinha dinheiro pro ônibus, muito menos pra sandália. Eu não tinha ambição pessoal na vida, toda minha energia mental e de trabalho eram direcionadas pra Dito. Enquanto eu conseguia quantias absurdas pra ele eu devia minhas contas, fui algumas vezes fazer acordo judicial pra parcelar dívidas que eu não pagava nunca.
Percepção da Manipulação sem Capacidade de Reação
Chegou um ponto que eu já estava entendendo que estava sendo usada e sabotada mas não conseguia reagir. Eu tinha muito medo, medo dele ler meu pensamento e me punir, medo das entidades. Se um cachê caía e eu não avisava a ele ficava depois com peso na consciência e medo da vingança divina. Era uma escravidão mental absoluta.
Estupros aconteceram 3 vezes e uma outra vez aconteceu algo que não sei como terminou, minha mente apagou. Estava na casa dele e seria um dia inteiro de rituais. Passei o dia todo ali preparando as coisas e convivendo com todos.
Em um momento Dito foi pra sala da frente, enquanto nós continuamos todos na garagem, quando chegou um recado pra mim, “mestra Aninha quer falar com você”. Cheguei na sala e estava tudo escuro, as cortinas fechadas. “Mestra Aninha” estava lá e me mandou tirar a roupa (Dito/Aninha usava só um pano enrolado como uma tanga e segurava uma taça com alguma bebida). Não lembro se ele (ou ela) me deu pra beber dessa taça. Não entendi nada, porque até então nunca tinha participado e nem sabia da existência de ritual onde eu tivesse que tirar a roupa junto com um homem.
Fiquei com medo mas obedeci, não sentia como se houvesse outra opção. “Ela” me mandou entrar no meio de um desenho que tinha sido feito no chão. Alguns desenhos eu reconhecia, outros não e não tinha a menor ideia do que era aquele ritual, ninguém me falou sobre fazer isso. Nunca vi isso antes. Você pode até não saber como se faz, já que candomblé e umbanda são aprendizados eternos mas normalmente você sabe o que está indo fazer, porque e quando vai fazer. Eu estava petrificada de medo e fiquei ali no meio, nua, constrangida, com um aperto no peito e vontade de chorar. Daí “Aninha” fez um círculo grosso com pólvora em volta de mim e ateou fogo.
Fiquei no meio do fogo, com muito medo e sem ter a menor noção de qual era o objetivo daquilo. Senti vergonha e culpa por desconfiar que estava sendo enganada. Queria que ninguém soubesse do que tinha acontecido ali e a força que me restava me empurrava pra um momento em que eu conseguisse me livrar daquilo tudo.
Não lembro o que aconteceu depois. Isso me dá arrepios até hoje. Não lembro eu vestindo a roupa e nem de coisas que ele (ou ela) falou, minha memória me leva pra eu já vestida e comendo. Enquanto escrevo agora me sinto nauseada, fico pensando se não houve outro estupro, mas não posso falar porque não sei o que aconteceu. Ainda hoje minha cabeça dói de tanto que forço pra lembrar o que houve depois mas não me vem nada, só um vazio.
A Casa
Veio a notícia de que o ylê axé (terreiro) deveria ser construído em breve. Quem deveria ir atrás do dinheiro? Eu, claro. Quem seria a primeira ekede (mulher que zela pelos orixás e pelo ylê) da casa? Eu.
Não entendia onde isso tinha se confirmado, me parecia algo forçado e não que havia saído no jogo. No jogo de búzios se descobre se se é ekede, rodante (que incorpora o orixá), ogã (quem zela pelos orixás tocando atabaques e ilus ou cuidando dos rituais). O que havia me sido dito era que eu era ogã (contrariando a tradição de mulheres não poderem ter esse posto), como de repente, além de eu ser ekede, também fui escolhida pra ser a primeira da casa, uma grande responsabilidade, isso sem jogo nenhum. Percebi que ele dizia que eu era ogã só pra conseguir me manter por perto.
Ninguém me perguntou se eu queria e me sentia preparada pra ser a primeira ekede da casa (e eu não queria de jeito nenhum). Eu não me pertencia, o que ele me mandasse fazer eu fazia. Meu medo dos meus pensamentos, das minhas desconfianças e questionamentos não me deixavam parar de obedecer. Segundo ele eu era predestinada àquela função e teria que cumprir, caso não o fizesse poderia pagar caro com tudo dando errado na minha vida (como se alguma coisa estivesse dando certo). Eu tinha muito medo que ele usasse entidades pra me machucar, essa ameaça estava sempre presente, um medo constante do mundo espiritual que ele manipulava.
Um dia, no meio de uma reunião, tirei forças não sei de onde e questionei, “e se eu não for essa primeira ekede da casa?”. Falei tão baixo que acho que eu na verdade só pensei. Nessa hora a “Mestre Paulo” veio com violência pra cima de mim e encostou a testa na minha, minha impressão era de que ele tinha levitado. Por um momento achei que ele fosse me bater. Eu ia fazer todo o processo de iniciação e minha cabeça explodia, eu não podia aumentar ainda mais minha ligação com aquele homem mas não podia admitir isso nem pra mim. Eu sofria, adoecia, minha vida estava um lixo.
A casa que hoje é o ylê axé (que de axé não tem nada) de Dito D’Oxóssi, no Alto Zé do Pinho, na rua da praça do terminal de ônibus, fui eu que comprei, não me pergunte como. Movi montanhas, pedi emprestado a amigos, juntei cachês que por ventura apareceram, cogitei pedir empréstimo em bancos mesmo sem saber como pagaria (minha sorte é que não aprovavam meu crédito). Meu namorado na época conseguiu também emprestado, entrou nessa pra me ajudar e passamos um bom tempo trabalhando pra pagar as dívidas que fizemos pra juntar todo esse dinheiro (na verdade nunca juntamos tudo, ele acabou bancando uma parte grande).
Até hoje não entendo como consegui levantar isso tudo. Foram anos de boicote, de abandono, minha cabeça estava doente. Seguia cumprindo as ordens, tudo o que me era colocado como missão.
Paralisia e Decisão
Um dia na Cantina Z4, depois da festa (tocávamos das 18h às 23h), estava carregando os tambores e vi Dito espancando um adolescente. Ele tinha pulado o muro pra assistir o afoxé (o ingresso custava 2 reais). Dito batia com técnica, já tinha lutado alguma coisa, não lembro o que, dava telefone, murro no peito, o menino chorava.
Eu via essa cena com o estômago embrulhando, eu sabia que estava errado, uma tristeza indescritível, mas parecia que eu estava hipnotizada. Nessa hora me veio forte a ideia de que teria que arrumar forças e fugir de tudo isso. Não gritei pra ele parar, nem corri pra pedir ajuda. Não fiz nada, fiquei petrificada, vendo a cena. Essa não era eu e eu estava muito decepcionada comigo. Eu jamais assistiria a uma coisa dessas sem reagir. Mas eu fracassei, apenas paralisei.
Acabamos de juntar o material pra ir embora (eles voltavam pra casa no carro que eu pagava e eu ficava na parada esperando o último ônibus passar) e vi o carro dar partida com a carrocinha anexada e minhas congas caindo em cambalhota, o barulho alto da madeira batendo e meu coração doendo do outro lado da rua.
Tinha certeza que saindo desse convívio iria morrer, iriam me matar, mas eu precisava fugir. Ainda não foi dessa vez que consegui me livrar. Ainda teria temporada do Ylê de Egbá no Armazém 14, no centro do Recife, muita coisa ainda aconteceria.
No dia que decidi ir embora foi na verdade a decisão de morrer. Eu tinha certeza que morreria, pela desgraça de abandonar minhas coisas de orixá a qualquer sorte, sem dar satisfação a ninguém ou Dito viria atrás de mim, pra me cobrar sei lá de que forma, ou por alguma armadilha espiritual, ele sempre contava casos em que entidades acabavam com a vida de alguns. Na verdade o grande perigo era a entidade Dito de Oxóssi. E Oxóssi não tem nada a ver com isso.
E aí também tinha esse conflito em mim, entidades com as quais me identifiquei, que respeitei e compartilhei tanto de mim, na minha cabeça elas tinham participado daquilo. A ideia de que poderia ser tudo encenação só passou pela minha cabeça anos depois. Ainda hoje custo a acreditar que foi tudo encenação, que ele não incorporava entidade alguma. Me sinto muito mal por ter sido tão enganada.
Escolha pela Morte e FUGA
Um dia fui na casa dele sem avisar, decidida a ficar livre de tudo aquilo. Sabendo que ele não estava em casa, peguei meus tambores (dessa vez sem pedir permissão) e fui pra casa com uma sensação completamente absurda de liberdade e de certeza da morte próxima. Fui pra casa cheia de medo, alegria e lágrimas, ali, perto dos meus tambores, esperando de verdade a morte chegar muito em breve. Eu tinha certeza que iria morrer e escolhi morrer a continuar nesse convívio.
Hoje percebo que minha vinda pra São Paulo, em 2003, foi movida também por essa fuga. Abandonei muita coisa, muita gente amada, perdi uma parte importante da vida dos meus irmãos, me afastei de minha mãe, não me comunicava com ninguém, era como se eu tivesse fugido do inferno. Morando em São Paulo eu nunca ia pra Recife pra passar mais que dois dias, ia só em situação de show e voltava o mais rápido possível.
Os estupros acabei não contando, percebo agora, escondi eles de novo, deixei pra narrar depois. Eles foram uma parte desse grande abuso que durou 4 anos. Com muita dor, culpa e alívio, vamos à narração dos estupros físicos:
Estupro 1:
Dito ligava pra mim com frequência, pra eu ir lá com urgência porque Malandrinho queria falar comigo. Eu ia e aí acontecia uma conversa com a entidade (lembrando, de novo, que eu tinha absoluta certeza de que era a entidade), conselhos, tudo como uma sessão normal com um médium incorporado.
Mas um dia toca meu telefone e é Malandrinho dizendo que está embaixo do prédio e quer subir. Achei muito estranho mas eu confiava em qualquer coisa vinda dessa entidade e também de Dito e concordei que subisse.
Hoje pra mim é tão difícil admitir que uma entidade faria isso como admitir que não era uma entidade e sim ele mesmo, repare como a mente fica depois de um estrago desses. Nesse dia eu estava triste e nervosa com umas situações pessoais e sem fazer nenhuma conexão entre esse meu estado depressivo e aquela convivência doentia. Pra mim eram meus problemas na banda, desentendimentos com meu pai. Eu me sentia culpada por tudo, inclusive pela minha tristeza.
Ele me levou pro quarto, me mandou ajoelhar no chão e agiu como se fosse começar uma daquelas sessões de conselho. Achei estranho o pedido pra ajoelhar mas fiz. Ele então abriu o cinto, abriu a calça e botou o pênis na minha boca. Eu fiquei aturdida, paralisada de medo, de culpa, de vergonha, embora eu estivesse sendo vítima de algo que nem sabia ainda o que era. Não entendi nada, estava tudo errado de novo e de novo eu não ia conseguir reagir, aos prantos, desesperada. Eu estava totalmente dominada por essa situação e me sentia sem domínio sobre minha mente nem meu corpo. Era uma entidade com a qual eu convivia há um tempo e tinha devoção.
Tirei minha boca e ele disse que dessa forma eu não ia conseguir nada na vida, que eu conseguir fazer aquilo seria a prova de que eu era forte, que o pênis dele ficar duro era um sinal da minha força, que aquilo não era errado, as pessoas que viam dessa forma, que aquilo era a energia dele vindo pra mim, que a energia passava dessa forma (sei que é totalmente absurdo mas no estado de hipnose em que eu estava eu não conseguia reagir).
Não queria contar isso, é terrível lembrar, queria esquecer, mas é algo que não se apaga. Senti muita culpa durante e depois.
Ele me botou de quatro, eu sem reação, e seguiu o estupro, dessa vez com penetração. Foi pouco tempo no relógio mas uma eternidade pra mim. Ele tirou, fechou a calça e o cinto e logo começou a agir como se a entidade tivesse ido embora, como se nada tivesse acontecido e como se não entendesse como tinha ido parar ali.
Eu completamente transtornada e esse homem agindo com uma naturalidade e uma frieza impressionantes. Fiquei em casa chorando muito, me sentindo culpada e ainda com um medo imenso de ter engravidado ou pegado alguma doença e me sentindo culpada de novo por pensar e sentir tudo isso. Isso aconteceu em 2000 ou 2001.
Estupro 2:
Eu estava na casa dele quando ele “incorporou Malandrinho”, me disse pra entrar no carro e pegou o caminho pra casa da minha mãe, pra eu pegar algum dinheiro de novo. Não tinha ninguém em casa. Ele me mandou ficar num canto da sala e começou a fazer perguntas sobre meus problemas pessoais, falando que sabia que estavam se resolvendo mas ainda faltava muito. Enquanto falava e dava conselhos, abriu a calça. Me encostou na mesa e me estuprou com penetração de novo, eu de novo chorando, na sala da minha mãe, com todo medo, culpa e tristeza aumentados por conta disso.
Logo depois que ele enfiou consegui reagir, empurrei ele (e fiquei com um peso estranho demais, achando que fiz algo muito errado e que seria punida) e ele tirou de dentro. Poucos minutos depois alguém entrou em casa. Minha vontade era de me matar. Saí de casa olhando pro chão e com uma culpa indescritível.
Ainda voltei pro Alto no carro dele, com ele, pra casa dele e tive que aguentar piadas e risadinhas dele sobre meu irmão ter chegado, risadinhas daquele que eu ali tinha plena certeza de que era uma entidade. Quando chegou na casa dele ele de novo fingiu que a entidade tinha ido embora e agiu como se nada tivesse acontecido. Isso foi em 2001.
Estupro 3:
Dessa vez foi no carro dele, “Malandrinho” botando o pênis pra fora enquanto dirigia o carro, puxando minha cabeça e enfiando na minha boca pra que eu repetisse tudo aquilo e falando que eu tinha me tornado mais forte, que minha mente estava tranquila. Eu estava destruída por dentro. Isso não lembro quando foi, só que foi depois das outras duas vezes.
Das Armadilhas
As armadilhas de uma mente que já foi aprisionada dessa forma, o estrago que esses abusos me causaram e as marcas que trago são imensas. Pra mim é difícil explicar como 3 estupros porque o que sinto é que foi um longo estupro de 4 anos. Foi um período de trevas absolutas e o que me move a falar isso agora é finalmente ter força pra conversar com minha mãe (que dor ter que ver ela desesperada com tudo isso) e pedir pra ela ser forte porque o revés não sei qual vai ser. Sabemos o que normalmente acontece com uma mulher depois desse tipo de denúncia, principalmente tantos anos depois e ainda mais contra uma autoridade religiosa.
Mas preciso falar, quero que caso alguém mais tenha passado por isso lá ou em outro lugar se sinta mais confortável pra abrir isso pro mundo, nessa tarefa de livrar o peso das situações de abuso e da convivência com a culpa, apesar de sermos vítimas. Quero que quem tiver frequentado, estiver frequentando ou pensando em frequentar o terreiro dele tenha conhecimento desse meu relato. Aquela casa foi comprada com dinheiro que eu levantei, me sinto na obrigação de desfazer isso.
Foi muito forte pra mim ver aquelas mulheres falando de João de Deus, foi uma limpeza simbólica pra todas as mulheres e isso acabou me atingindo também. Espero que ninguém precise passar por isso, que quem por ventura passe consiga se libertar desse horror, que ninguém esteja tão fraca a ponto de considerar sua vida sem valor ou de se sentir culpada pela ação criminosa de outra pessoa contra si própria. Hoje pretendo abrir um caminho pra me livrar disso de uma vez. Foram tantas as vezes que achava que estava me livrando de vez que já não sei dizer o que acontecerá de fato mas preciso que essa esperança me mova.
Sei que hoje vivo a verdadeira relação com meu ori (cabeça), com as entidades em que acredito e sinto uma presença ancestral forte, vibrante, benéfica e agregadora. Mesma presença que sinto nos meus tambores. Nada desse horror que vivi abalou minha crença nos orixás, na natureza, ela me guia e eu faço parte dela.
Axé! E obrigada, Zahira!
Fonte: Extra