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O conhecimento indígena é como a arqueologia: quanto mais se cava, mais se encontra”, afirmou a historiadora Soleane Manchineri, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado do Acre, a um auditório repleto de pesquisadores de instituições de vários estados do país, parentes – como os indígenas se referem uns aos outros –ne representantes de outras comunidades tradicionais amazônicas (quilombolas e beiradeiros). A frase ficou marcada como representativa do encontro, que aconteceu no Museu da Amazônia (Musa), em Manaus.
A ideia era mostrar os resultados preliminares do projeto Amazônia Revelada, liderado pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que usa uma tecnologia de sensoriamento remoto chamada Lidar (Light Detection and Ranging) para mapear o solo por meio de uma saraivada de milhares de feixes de laser. Com financiamento da Sociedade National Geographic, o projeto contratou sobrevoos em áreas impactadas por desmatamento e projetos de infraestrutura, com autorização das comunidades locais.
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O Lidar permite reconstruir com detalhes a imagem tridimensional da estrutura de uma floresta, com seus troncos, ramos e folhas, e também enxergar o que está abaixo dela. É isso que interessa a Neves, que pretende ressaltar a importância da Amazônia como patrimônio histórico e biocultural, formado ao longo dos últimos 13 mil anos pelos povos da floresta.
O pesquisador trabalha na região há quase 40 anos, presenciou desmatamento e destruição de uma parte considerável de sua área e contribuiu para a formação de um grande número de arqueólogos – muitos deles originários da região amazônica e vários radicados em universidades e centros de pesquisa de estados do Norte. O projeto começou por cinco áreas nas quais a rede de pesquisadores ligada a Neves já conduz projetos em parceria com as comunidades locais, desde que elas tenham aderido à iniciativa: Acre/Sul do Amazonas, Médio Guaporé, Tapajós, Terra do Meio e Marajó. Como parceiros na coordenação, Neves conta com os arqueólogos Bruna Rocha, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, Cristiana Barreto, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém, Carlos Augusto da Silva, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o italiano Filippo Stampanoni, diretor-geral do Musa, e o norte-americano Morgan Schmidt, pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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O projeto tem sede no Musa, criado pelo físico Ennio Candotti e instalado desde 2011 em uma área de 100 hectares (ha) na Reserva Florestal Adolpho Ducke, na borda da capital amazonense. Em espaços integrados à floresta, o museu exibe aspectos da flora, da fauna e da população humana da região. O Amazônia Revelada viabilizou a construção do auditório onde se deu o encontro, de um espaço expositivo com uma mostra sobre a arqueologia amazônica e outra sobre os resultados iniciais do projeto, e de uma reserva técnica apta a armazenar artefatos arqueológicos, etnográficos e fósseis. “Com isso, o Musa se torna um polo na pesquisa em arqueologia”, destacou Stampanoni.
A ideia é fazer uma ciência colaborativa, codesenhada e coproduzida com as comunidades locais. “O projeto não é nosso, a demanda de estudo para demarcação é deles”, afirma o arqueólogo Francisco Pugliese, da Universidade de Brasília (UnB). “Nós somos apenas os instrumentos.” O consentimento informado imprescindível à realização do projeto em cada área sai de conversas detalhadas e prolongadas entre os arqueólogos e os habitantes. O conhecimento indígena também guia os pesquisadores para locais mais carregados de história e ajuda a interpretar os achados, prática incomum no âmbito acadêmico.
Visão a laser
No Acre, a possibilidade de usar o Lidar para enxergar o solo abaixo da floresta começou a expandir o número conhecido de geoglifos, enormes figuras geométricas marcadas no chão por valetas e muretas construídas por povos ancestrais e muitas vezes interligadas por estradas milenares (ver Pesquisa FAPESP nº 299). Os sobrevoos já aconteceram por lá, revelando que esses sítios arqueológicos, muito documentados na parte sul do estado, também existem ao norte do rio Purus, já no estado do Amazonas. Um dos geoglifos documentados é quadrado, com estradas afuniladas que saem de dois dos lados, grande a ponto de poder abarcar o estádio do Maracanã, conforme mostrou o topógrafo e geômetra português Hugo Pires, da Universidade do Porto, de Portugal.
O pesquisador aderiu ao projeto recentemente, depois de ouvir um episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta feito pela jornalista Letícia Leite, responsável pela comunicação do Amazônia Revelada. Pires trabalha com documentação de patrimônio arqueológico em vários lugares do mundo e desenvolveu um método chamado Modelo Residual Morfológico (MRM) para tratar os dados do Lidar. A técnica permite colorir depressões e elevações no microrrelevo do solo captado pelo Lidar, e com isso gera imagens que revelam a complexidade do terreno de forma mais contrastada e ressaltam detalhes arqueológicos.
O primeiro a avistar geoglifos na Amazônia brasileira foi o paleontólogo Alceu Ranzi, atualmente aposentado pela Universidade Federal do Acre, ao chegar a Rio Branco em um voo comercial em 1986. Demorou quase 20 anos para que se dedicasse a eles. “Em 2000 vi que os arqueólogos não estavam trabalhando nisso”, contou ele, que passou a fazer sobrevoos para procurá-los. “Depois veio o Google Earth, eu passava horas no computador buscando geoglifos.” Ele foi procurado por um desconhecido, Francisco Nakahara, que tinha visto um documentário sobre o assunto e queria também encontrar esses vestígios. Ranzi ensinou como e passou a receber registros com coordenadas. “É um senhor de 84 anos e já listou mais de 300 geoglifos”, conta o paleontólogo. No estado há cerca de mil geoglifos registrados em áreas desmatadas.
Mais surpreendente foi o achado no município de Costa Marques, Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Ali está a comunidade quilombola de Príncipe da Beira, remanescente de escravizados levados para a construção de uma fortaleza, no final do século XVIII para defesa contra invasões hispânicas, que ao longo do século XIX perdeu importância até ser abandonada. De acordo com o arqueólogo Carlos Augusto Zimpel, da Universidade Federal de Rondônia (Unir), nas ruínas havia objetos europeus, como louça e talheres, assim como indígenas e pessoas de origem africana. A construção é tombada desde 1950 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com o Lidar, apareceram perto dele os resquícios de uma vila portuguesa que consta em um mapa do século XVIII com o nome de Bragança, mas cuja localização não se conhecia. “Eu passava por lá e não percebia a vila”, disse Zimpel. Perto dos vestígios em relevo, que permitem reconstituir o traçado das ruas, há geoglifos e valas indicativos de uma ocupação muito mais antiga, com restos de cerâmica associados a manchas de terra preta, o solo modificado pela ação indígena. “O projeto Amazônia Revelada pode levar turismo arqueológico para lá”, comentou Santiago Cayaduro Pessoa, que vive na comunidade e atua como guia no forte.
Os Kuikuro do Alto Xingu são parceiros da pesquisa arqueológica, mas em um primeiro momento não aceitaram os sobrevoos por não querer que dados sobre seus locais sagrados se tornassem públicos. Mas têm colhido imagens em pontos específicos usando um drone equipado com Lidar, que o técnico geógrafo Kumessi Kuikuro pilota com maestria. “Os Kuikuro se tornaram referência no Território Indígena do Xingu em termos de mapeamento e são procurados pelas outras etnias”, disse a arqueóloga Helena Lima, do MPEG. Pelo acordo, os dados coletados pertencem aos indígenas, que concedem níveis de acesso aos pesquisadores.
Um sítio arqueológico próximo à aldeia tem montículos, valas, praças e estradas. As valas seguem para o rio e conectam todos os sítios no Alto Xingu, segundo Schmidt, que trabalha na Amazônia desde 1998. Pela presença de terra preta, cuja formação intencional ele descreveu recentemente em coautoria com indígenas Kuikuro (ver Pesquisa FAPESP nº 333), ele interpreta montículos dispostos em círculo como as lixeiras atrás de cada uma das casas. As habitações, feitas de barro e madeira, não resistiram ao tempo. Mas as composteiras, sim.
No espírito de pesquisa conjunta entre arqueólogos e indígenas, e de prática decolonial, todo o material escavado nas terras tuparis fica na aldeia Palhal, em Rondônia, onde há o plano de criar um museu. Réplicas para registro dos pesquisadores serão feitas a partir de escaneamento tridimensional. Uma das lutas dos habitantes da Palhal é pela demarcação, uma vez que a aldeia ficou de fora da contígua Terra Indígena Rio Branco. “Nossos antepassados estão enterrados lá”, explicou Adilson Tupari.
Um desafio é transformar os achados em proteção da floresta e melhoria na vida de quem vive nela, uma vez que os sítios arqueológicos têm proteção garantida pela Constituição. “Jogamos um bom problema no colo do Iphan”, brincou Neves, do MAE-USP. Isso porque não há um mecanismo para cadastrar sítios arqueológicos apenas com base em imagens obtidas com Lidar, e a tecnologia já começou a revelar mais áreas de interesse do que é possível visitar e escavar em tempo hábil. Será necessário adequar a normatização e ampliar as possibilidades de registro, e mesmo assim os problemas não terão terminado. “Proteção normativa não necessariamente significa proteção física”, disse o arqueólogo Thiago Berlanga Trindade, chefe do Serviço de Registro e Cadastro de Dados do Iphan. A comunidade e a sociedade civil precisam se envolver na fiscalização.
Os povos da floresta – sejam eles indígenas, quilombolas, beiradeiros ou ribeirinhos – enfrentam ameaças que são urgentes, violentas e graves. Os relatos incluíram genocídio, estupros, epidemias letais, estradas cortando territórios, poluição dos rios, destruição de locais sagrados, invasões por fazendeiros (com monoculturas de soja, milho ou arroz), grileiros, madeireiros e garimpeiros, secas decorrentes de mudanças climáticas ou barragens hidrelétricas. A mudança climática tem sido um golpe mais inesperado, em acréscimo à sucessão de violências desde a chegada dos europeus à região. “Estamos vivendo uma estiagem que nunca meus avós pensaram em ver”, contou Marquinho Castro dos Santos, do povo Mayoruna, professor na escola de sua aldeia, Marajaí, às margens do Solimões, no município de Alvarães. Nessa erosão de direitos básicos também perdem o acesso à memória. A comunidade beiradeira – resultante de casamentos entre indígenas, descendentes de escravizados de origem africana e ribeirinhos – da Terra do Meio, no sul do Pará, tem visto a história se perder, com parco acesso a educação e sem valorização da cultura local. Também do Pará, às margens do rio Tapajós, vieram beiradeiros de Montanha e Mongabal e um representante do povo indígena Munduruku. O arqueólogo Vinicius Honorato, da Ufopa, ressaltou que a arqueologia ajuda a fortalecer o conhecimento tradicional.
Na busca pela recuperação e preservação da memória, Antônio Enésio Tenharin, secretário executivo municipal de Povos Indígenas em Humaitá, no sul do Amazonas, contou que seu povo pede, por meio de uma ação civil pública de 2014, a criação de centro de memória e publicação de material didático sobre os impactos da construção da rodovia Transamazônica sobre os povos indígenas Tenharin e Jiahui.
A reunião em Manaus permitiu o encontro entre todos esses grupos e reforçou a arqueologia como aliada. “Estamos juntos nessa batalha”, disse Vilson Tenharin, da aldeia Marmelos, no sul do Amazonas. Foram quatro dias ricos na formação de uma rede, que os coordenadores pretendem fortalecer promovendo outros encontros entre os povos. O trabalho arqueológico, eles afirmaram, precisa partir dos povos da floresta, inclusive promovendo a formação de arqueólogos de origem indígena, quilombola e beiradeira.
Vista como uma ciência voltada para o passado, a arqueologia se apresentou como uma janela para pensar (e garantir) o futuro. Para os pesquisadores e povos da floresta, a Amazônia não está revelada; está se revelando.
Fonte: Um Só Planeta