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Em 1953, um filhote de pastor alemão foi abandonado na porta do canil da Polícia Militar de São Paulo. O cachorro foi adotado pelos policiais, recebeu o nome de Dick e foi treinado para que pudesse integrar a equipe da PM. Ninguém imaginaria que ele fosse se tornar, dali a alguns anos, um dos maiores símbolos da instituição.
Os cães que integram equipes de polícia recebem treinamento para que possam atuar em atividades como busca por explosivos ou drogas e resgate de pessoas desaparecidas em diferentes situações.
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Os militares da época perceberam a aptidão de Dick para os trabalhos policiais logo nos primeiros treinamentos do cão. Ele passou a integrar as equipes que participavam das ocorrências. O desempenho do animal era considerado excelente durante as atividades, como buscas por objetos desaparecidos ou procura por explosivos.
Cada cachorro era parceiro de um membro da polícia, que era responsável por cuidar do animal e acompanhá-lo nas ações. O companheiro de Dick era o soldado José Muniz de Souza.
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Em 1956, um aviso do então governador de São Paulo, Jânio Quadros, causou temor entre os policiais que atuavam no canil, que havia sido fundado seis anos antes. Em um bilhete, Quadros foi direto: façam os cães trabalharem ou dissolvam a matilha. O aviso ocorreu em razão da contenção de gastos da época.
O canil foi posto em xeque porque era considerado por muitos como algo supérfluo. Havia quem defendesse que os gastos com alimentação e cuidados com os cachorros que integravam a equipe da PM não traziam o retorno esperado.
No mesmo período, o desaparecimento de uma criança ganhou as manchetes de noticiários do país. O pequeno Eduardo Benevides, o Eduardinho, de pouco mais de três anos, foi raptado enquanto estava na porta de sua casa, em São Paulo.
O governador determinou a criação de uma força-tarefa para procurar pelo garoto. Ele não queria que fossem poupados esforços na busca pelo desaparecido.
Criança desaparecida
Em dois dias de buscas intensas por Eduardinho, nada parecia trazer respostas sobre o paradeiro da criança. O então governador de São Paulo decidiu estimular a procura e disse que promoveria os responsáveis por localizar a criança.
Para que pudessem buscar pelo garoto, os cães sentiram o cheiro de um travesseiro que pertencia à criança. No terceiro dia, enquanto procurava em uma área de mata na Água Funda, nas proximidades de onde hoje está localizado o Zoológico de São Paulo, Dick ficou agitado e latiu intensamente.
O local apontado pelo cachorro era em uma área afastada na qual havia uma parte coberta por uma telha. O soldado Muniz ficou atento ao aviso do animal e levantou o objeto que cobria o lugar. Embaixo havia um poço vazio, e, dentro dele, estava Eduardinho, aflito e desesperado. Conforme relatos da época, o garoto tinha se perdido e foi encontrado abatido e fraco. Ele foi resgatado e encaminhado para receber os atendimentos médicos necessários.
Os policiais acreditam que Eduardinho entrou no buraco para se abrigar, após ser deixado na região. Conforme publicações da época, suspeitava-se que os responsáveis pelo rapto do garoto eram membros de uma quadrilha que também teria sequestrado uma outra criança anteriormente — segundo a PM, a suspeita não chegou a ser confirmada e ninguém foi preso pelo rapto do garoto.
As condecorações
O resgate de Eduardinho causou comoção. Diversas autoridades elogiaram o fato. O soldado Muniz foi convocado pelo governador para que fosse parabenizado. Filha de Muniz, a aposentada Maria do Carmo de Souza relembra que o pai fez questão de frisar para Jânio Quadros que Dick fora o responsável por localizar a criança.
“O meu pai logo falou que não foi ele quem salvou a criança, porque quem deu o comando foi o Dick”, conta à BBC News Brasil. O principal pedido do soldado ao governador foi que o canil não fosse extinto. “Meu pai pediu para que dessem continuidade ao trabalho com os cachorros. Por causa do Dick, o canil nunca foi fechado”, revela a aposentada.
Diante do reconhecimento do soldado sobre a importância de Dick no resgate, as homenagens também se estenderam ao cachorro. Ele foi promovido a cabo, junto com Muniz — na época, foi o único cachorro a conquistar tal promoção.
O capitão Herick Lemos, que integra o canil da Polícia Militar de São Paulo, avalia que o caso de Dick foi fundamental para que as autoridades da época entendessem a importância do canil e do uso de cães em ações policiais. “O Dick se tornou um herói. Ele foi um cão muito vitorioso e ajudou o canil”, relata Lemos.
Dick e Muniz receberam inúmeras homenagens, até na Câmara Municipal de São Paulo, e ganharam status de heróis.
Depois do resgate de Eduardinho, outra ação da dupla também ganhou os noticiários: quando o animal identificou o local em que se encontrava o corpo de uma garota desaparecida, em Novo Horizonte (SP).
Fátima, a menina, tinha sido violentada, morta e jogada em uma profunda fossa.
Em uma entrevista a um jornal local da época, o assassino confesso, identificado como “Cascudo”, diz ao repórter que achava que escaparia da Justiça, não fosse o “maldito do Dick”: “O cachorro acabou estragando minha vida”.
A despedida
Dick e Muniz eram parceiros também fora do cotidiano policial. Com frequência, o policial levava o cachorro para a casa de sua família. “Eles tinham uma relação maravilhosa. Era muito lindo vê-los juntos”, relembra Maria do Carmo.
Em junho de 1959, Dick não resistiu a uma grave hepatite e morreu. A morte do animal causou comoção e repercutiu nos noticiários. Muniz ficou emocionado com a partida do companheiro de buscas e decidiu trocar de posto.
“O meu pai ficou muito abalado e pediu para ser transferido para a Polícia Rodoviária, porque não aguentaria ficar no canil”, diz Maria do Carmo. Segundo ela, a história que teve com o pastor alemão era uma das que Muniz mais se orgulhou durante a carreira na Polícia Militar. “Ele sempre contava sobre o Dick para as pessoas, mesmo décadas depois.”
Em 2016, Muniz morreu após ter um acidente vascular cerebral (AVC), aos 88 anos. Ele foi homenageado por membros do canil. “O enterro do meu pai foi muito bonito. Muitos cães da PM acompanharam a cerimônia, junto com policiais responsáveis por eles, para homenageá-lo. Os animais uivaram muito no momento em que enterraram o caixão. Foi emocionante”, diz Maria do Carmo.
O canil
Atualmente, o canil se tornou um batalhão da Polícia Militar de São Paulo — ou seja, no local também são feitas atividades policiais, além dos cuidados com os animais. Segundo a PM, atualmente há 320 cães — pastores alemães, pastores holandeses, labradores e rottweilers, entre outras raças — que atuam em diferentes atividades policiais no Estado.
“Os cães são empregados no patrulhamento ostensivo, ocorrências de controle de multidões, ocorrências no interior de estabelecimentos prisionais, faro de drogas, faro de explosivos, busca de pessoas perdidas, busca em mata, resgate de pessoas em estruturas colapsadas, resgate em catástrofes, entre outras atividades”, explica o capitão Lemos.
Para Maria do Carmo, o canil não recebe, atualmente, seu devido valor. “É preciso haver mais atenção com o local e com os animais que estão lá”, diz a mulher.
Ela afirma que é necessário dar melhores condições de trabalho para os policiais do local e mais atenção aos animais. A PM de São Paulo, porém, afirma que os cães e os policiais que lidam com os animais recebem tratamento adequado e, por isso, trazem “grandes resultados para a segurança pública”.
Um dos mais conhecidos cães que já passaram por ali, Dick é lembrado até hoje no canil. Na entrada do local há um busto em homenagem ao pastor alemão. “Ao cabo Dick, campeão das buscas policiais”, diz a placa colocada logo abaixo do rosto do animal. Os dizeres estendem a homenagem a todos os outros cães e os definem como “exemplo de fidelidade, coragem e afeição.”
Fonte: BBC