16 de novembro, 2024

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Médico de Botucatu é entrevistado pela BBC em documentário sobre quem vive com HIV desde os anos 80

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Uma sentença de morte. Desta forma, a servidora pública Leiry Maria Rodrigues, de 54 anos, classifica o resultado do exame que revelou que ela convivia com o vírus HIV em 11 de agosto de 1989, aos 25 anos.

Na época, não havia muitos esclarecimentos sobre o assunto e tampouco tratamento eficaz. Então, a expectativa de vida para aqueles que possuíam o vírus não passava de um ano.

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“O médico me disse que não havia nada a ser feito. Eu questionei: ‘então vou esperar morrer?’. Ele disse que era ‘mais ou menos isso’. Eu completei: ‘a única prevenção que posso fazer é comprar um caixão e colocar atrás da porta?’. Novamente, ele me disse que era ‘mais ou menos isso'”, relata Rodrigues, que convive com o vírus há quase 30 anos.

Ela foi infectada por um namorado com quem ficou por dois anos. “Ele morreu, em decorrência da Aids, e o médico pediu que eu fizesse o exame. Sempre me cuidei, mas como era um relacionamento sério, deixamos de usar preservativo”, revela.

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Desde a descoberta do vírus, ela nunca deixou de trabalhar, teve uma filha – que nasceu sem o vírus – e começou a cursar psicologia, curso no qual se formará neste ano.

“Levo uma vida normal, apesar de tomar medicamentos e ter algumas poucas complicações em razão do HIV. Nunca pensei que fosse viver tanto tempo. Costumo dizer que sou uma sobrevivente.”

Entre 1980 e 1990, conforme o Ministério da Saúde, foram notificados 25.513 casos de Aids no Brasil, 80% deles em homens.

As pessoas que sobreviveram ao vírus nos anos 80 viram amigos e parentes morrerem em decorrência de Aids – doença desenvolvida quando o sistema imunológico é afetado pelo vírus HIV. Elas carregavam consigo a certeza de que teriam o mesmo destino em poucos meses. Hoje, 30 anos depois, se consideram vitoriosos por estarem vivos.

Alexandre Naime Barbosa

O infectologista Alexandre Naime Barbosa, membro do Comitê de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia, explica que muitos sobreviveram ao HIV em razão do modo como seus organismos reagiram ao vírus. “Todos nós somos programados, ao nascer, para termos respostas distintas, mais forte ou mais fracas, a diferentes doenças. Há pessoas que se infectam pelo vírus, mas o próprio sistema imune consegue controlá-lo e por isso têm a quantidade de vírus muito baixa. Elas podem passar a vida toda sem descobrir que são portadoras do HIV. Isso explica porque muita gente se infectou na década de 80 e está bem até hoje.”

“Porém, 90% das pessoas infectadas ficam doentes em um período de seis a oito anos, caso não se tratem. Há também aquelas que em menos de dois anos após adquirir o vírus já sofrem complicações”, diz.

Apesar de terem sobrevivido e levarem uma vida normal, aqueles que convivem com o HIV há quase três décadas carregam consigo mazelas em decorrência do vírus e das décadas de tratamento. Muitos se assustam com a aparente tranquilidade com a qual gerações mais novas têm lidado com o tema.

“Certa vez, estava em um congresso e um médico falou que o HIV era igual à gripe. Mas não é verdade. A gripe é um probleminha, enquanto o HIV é um problemão, para a vida toda”, relata o escritor Beto Volpe, que contraiu o vírus em 1989, aos 28 anos.

Os anos 80

O HIV foi descoberto em 1981, ano em que foram descritos os primeiros casos em humanos. Até o início dos anos 90, em razão das poucas opções de tratamento, as pessoas que eram infectadas pelo vírus costumavam ficar doentes com frequência. Com a fragilidade na saúde, as doenças oportunistas eram responsáveis por grande parte das mortes.

De acordo com o Ministério da Saúde, assim como hoje, o perfil da epidemia de HIV/Aids no Brasil na década de 80 era composto majoritariamente por homens que faziam sexo com outros homens. Havia também um grande número de hemofílicos, infectados durante transfusões de sangue, além de usuários de drogas injetáveis. As mulheres passaram a representar uma parcela relevante entre os infectados apenas no início da década de 90.

Os medicamentos antirretrovirais começaram a surgir ainda na década de 80, com o objetivo de impedir a multiplicação do vírus causador da Aids e evitar o enfraquecimento do sistema imunológico. Segundo o Ministério da Saúde, o primeiro medicamento foi o AZT, criado em 1987. No entanto, longe de representar uma solução, ele apenas garantia uma sobrevida de até dois anos ao paciente, já que não era capaz de bloquear completamente a ação do HIV no organismo.

As dificuldades de tratamento eram conhecidas por Volpe, hoje com 56 anos, que já havia perdido amigos em decorrência do vírus. “Dos anos 70 ao início dos 80, eu não costumava usar camisinha, não era comum. Mas depois da descoberta do HIV, passei a usar. Cheguei a fazer um teste em maio de 1989, que deu negativo. Mas tive um envolvimento com outro rapaz, ele pediu para deixarmos de usar camisinha e acabei cedendo. Depois, ele descobriu que estava com o vírus. Eu também”, narra.

Logo após a descoberta do vírus, Beto obteve licença médica no trabalho em um banco de São Paulo. “Isso era concedido imediatamente. Muita gente foi aposentada compulsoriamente por conta do HIV”, diz. Em seu caso, a aposentadoria chegou no início dos anos 90.

Ele conta que o resultado positivo para o HIV fez com que mudasse o modo como enxergava a vida. “Era uma morte anunciada. Então passei a curtir o hoje, porque poderia não haver amanhã. Acredito que viver com o vírus é como qualquer pessoa deveria viver, mesmo que não o tenha. É aproveitar as coisas como se não houvesse amanhã, se alimentar corretamente e fazer exercícios”, diz.

A sensação de não ter tempo e a necessidade de aproveitar a vida também surgiram na jornalista e escritora Valéria Polizzi, hoje com 46 anos, que descobriu ter HIV, em 1989, aos 18 anos. Ela deixou de fazer planos a longo prazo, pois acreditava que poderia morrer em poucos meses. “Era ano de vestibular, mas acabei indo para Nova York, para morar com uma tia. Depois voltei, fiz vestibular e passei para Letras. Mas ainda era muito forte a ideia de que iria morrer em pouco tempo. Eu pensava: ‘não vai dar tempo’. Acabei largando o curso. Depois fiz teatro e, anos mais tarde, decidi cursar jornalismo.”

“Até hoje, tenho problemas em fazer planos a longo prazo. Se alguém me falar sobre algo no fim do ano, penso que o fim de 2018 não existe. Vamos ficar apenas com o primeiro semestre, por enquanto, que está ótimo”, declara.

A ausência de tratamentos trazia incerteza às pessoas que descobriam conviver com o HIV nos anos 80 e 90. O arquiteto e arteterapeuta José Hélio Costalunga, de 66 anos, que descobriu estar infectado com o HIV em 1988, se recorda dos obstáculos encontrados após receber o exame positivo. “O médico me disse que eu deveria esperar o incerto. Faziam acompanhamento da minha imunologia e outros exames para ver como estava a minha situação. Era apenas isso.”

“Eu ‘toquei o barco’ e segui em frente. Preferi enfrentar a realidade da vida. Pensei: ‘se tiver que morrer, morri. Se tiver que viver, vivi’. E assim fui vivendo”, completa.

O arquiteto foi infectado pelo HIV durante um namoro, aos 36 anos. O parceiro dele contraiu o vírus por volta de 1985 e somente foi descobrir cerca de três anos depois. “Ele começou a adoecer, emagrecer e descobriu que havia sido infectado. Em seguida, fiz o teste e deu positivo também.” Além da incerteza sobre o vírus, Costalunga também teve de lidar com o estado terminal do parceiro. “Foi uma situação muito difícil, mas fiquei ao lado dele até o período em que faleceu”, conta.

Costalunga afirma ter levado uma vida normal, sem grandes complicações com o vírus, até o ano de 1995, quando teve a primeira doença oportunista. “Eu tive uma tuberculose ganglionar e precisei me tratar.” Ele somente começou a tomar os medicamentos antirretrovirais no ano seguinte. “Meus clientes fizeram uma vaquinha e um deles, que estava indo passear em Nova York, comprou o coquetel. Foi assim que tomei a minha primeira dose”, relata.

O coquetel de medicamentos antirretrovirais – feito por meio da combinação de três drogas – foi desenvolvido em 1996. No mesmo ano, os remédios passaram a ser distribuídos gratuitamente no Brasil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Desta forma, houve redução nos números de mortes em decorrência da Aids.

“Esses medicamentos mudaram o modo como o HIV era tratado, porque, pela primeira vez na história da medicina, pacientes ficaram com a carga viral indetectável no sangue, ou seja, zeraram a taxa de HIV. Assim, passaram a ter uma qualidade de vida muito boa e uma expectativa de vida muito próxima ou igual à de pessoas sem o vírus”, diz o infectologista Alexandre Naime.

Para a escritora Valéria Polizzi, os coquetéis foram fundamentais para conviver com o HIV. “Eu tive uma tuberculose em 94, quando estava nos Estados Unidos. Então, fiz tratamento com o AZT. Porém, o efeito dele era curto e meses depois tive de parar de tomar, porque não me ajudava mais. Somente em 97, quando comecei a tomar o coquetel, as coisas melhoraram e consegui me estabilizar”, detalha.

“Eu cheguei a parar de tomar um dos tipos de medicação do coquetel, porque passava mal o dia inteiro. Cheguei a falar ao meu pai: ‘prefiro morrer a levar uma vida assim’. Mas isso varia de pessoa para pessoa. Depois, fui me adaptando aos medicamentos ao qual meu organismo reagiu melhor”, acrescenta.

Uma das dificuldades destacadas por aqueles que convivem com o HIV há décadas é o envelhecimento precoce. Eles afirmam terem desenvolvidos doenças que são comuns a pessoas com idades mais avançadas que as suas. José Hélio Costalunga possui neuropatia periférica, que fez com que ele perdesse o equilíbrio. “Hoje em dia, passo o tempo inteiro tonto. Ando de bengala. Isso é para o resto da vida.”

“Essa perda de equilíbrio acontece com pessoas de 75 a 85 anos, mas comigo foi aos 65, em razão do envelhecimento precoce causado pelo HIV. Há muitos estudiosos que estão considerando que as pessoas com HIV se tornam idosas aos 50 anos”, diz.

Beto Volpe também revela ter tido algumas doenças precocemente. “Tive catarata aos 38 anos. Conheço gente que teve osteoporose aos 27. Tenho várias mazelas como triglicérides, colesterol e glicemia alterados, desde a faixa dos 30 anos”, pontua.

Conforme o infectologista Alexandre Naime, o envelhecimento precoce é recorrente em alguns pacientes que vivem com HIV em razão de uma inflamação crônica causada pelo vírus. “É como se o indivíduo passasse por desafios imunológicos e respondesse com uma série de marcadores inflamatórios, que causam efeitos colaterais. Essa inflamação, com o passar dos anos, aumenta os riscos de doenças. Isso é muito mais intenso naqueles sem tratamento ou que não fazem o tratamento corretamente. Porém, também pode ocorrer, em menor quantidade, naqueles que tomam os medicamentos corretamente e possuem carga viral indetectável.”

“Entre esses problemas precoces estão acidente vascular cerebral, infarto, diabetes, hipertensão, fibrose, entre outros”, acrescenta.

Para José Hélio Costalunga, a medicina enfrenta um novo dilema relacionado ao HIV: como tratar os sobreviventes da epidemia dos anos 80.

“O nosso problema agora é o envelhecimento precoce. Os remédios ativam isso ainda mais. O que cura, mata. Ele ajuda, mas também causa transtornos, como qualquer outra medicação”, afirma.

Os efeitos colaterais das drogas se acumulam. Leiry Rodrigues diz sofrer com a lipodistrofia – distribuição anormal de gordura – e lipoatrofia – perda de gordura em algumas áreas do corpo. Já Polizzi passou a sofrer de inflamação renal. Por meio de comunicado, em resposta à BBC Brasil, o Ministério da Saúde reconhece que há problemas decorrentes do longo período de utilização dos medicamentos. “Podem ocorrer algumas adversidades como toxicidade óssea ou renal, dislipidemia – níveis elevados de gordura no sangue -, resistência à insulina ou doença cardiovascular.”

No entanto, a pasta afirma que os antirretrovirais adotados atualmente possuem menos efeitos considerados graves ou intoleráveis que os utilizados anos atrás. “Os benefícios da supressão viral e a melhora na função imunológica, como resultado da terapia antirretroviral, superam largamente os riscos associados aos efeitos adversos de alguns desses medicamentos.”

O preconceito e a banalização

Além dos efeitos da doença e dos medicamentos sobre o corpo, os pacientes de HIV tem que lidar com um binômio de reações que os preocupa: o preconceito em relação à sua condição e a banalização do vírus. “Os próprios médicos diziam que era melhor não contar pra ninguém, senão nossa vida acabava”, conta Valéria Polizzi.

Com Volpe, o preconceito se manifestou até mesmo no consultório médico, nos anos 90. “Quando cheguei, o médico não deixou que eu o cumprimentasse e me disse para ficar atrás de uma linha amarela. Ele havia feito uma faixa, a dois metros, para as pessoas com HIV que iam lá.”

Desde 2014, o Brasil possui Lei Antidiscriminação, em 2014, que tornou crime qualquer tipo de discriminação aos portadores do vírus da imunodeficiência e a doentes de Aids.

Se os 30 anos na companhia da doença não reduziram o preconceito para quem vive com HIV, o avanço no tratamento e a diminuição do tamanho do tabu tem causado uma certa banalização da questão. A primeira geração de infectados assiste com preocupação ao descaso de alguns jovens em relação à prevenção: 52,5% dos casos atuais de HIV são diagnosticados na faixa etária entre 20 e 34 anos de idade.

De acordo com o Ministério da Saúde, os jovens homossexuais figuram entre a parcela de pessoas em que houve os maiores aumentos de registros de Aids no Brasil.

“Do ano de 2006 para o de 2016, a taxa de detecção de casos de AIDS por 100 mil habitantes quase triplicou entre os homens de 15 a 19 anos. Entre os de 20 a 24 anos, a taxa mais que duplicou”, diz o órgão.

“Hoje, o descaso é muito grande, por conta dessa banalização. Muita gente pensa ‘tem terapia, então é só tomar que está tudo bem’. Mas as coisas não são assim tão simples”, declara Rodrigues.

Um dos temores de José Hélio Costalunga, que atua em movimentos sociais em favor de pessoas com HIV, é que o Governo Federal deixe de entregar os medicamentos gratuitos.

“No ano passado houve falta de medicação no Brasil. Muitos jovens pensam que está tudo lindo e maravilhoso, porque existe tratamento, mas as coisas não estão assim. Falta medicação e a gente não sabe o que vai ser daqui pra frente, ainda mais com as mudanças econômicas que estão acontecendo no Brasil”, declara.

O Ministério da Saúde, porém, nega que exista a possibilidade de falta de remédios contra o HIV no Brasil. A pasta justifica que dificuldades com logística na distribuição de medicamentos podem ter prejudicado algumas regiões.

Expectativas para o futuro

Para quem sobreviveu aos anos 80 com o HIV, todos os dias é classificado como uma nova oportunidade.

Valéria Polizzi, que acreditava que não chegaria aos 19 anos, ainda se surpreende quando se lembra do momento em que descobriu o vírus.

“A gente não ia sobreviver. Se alguém me falasse que eu chegaria aos 45 anos, não acreditaria. É duro chegar assim, tendo que tomar remédios todos os dias, com uma série de efeitos colaterais. É um pé no saco. Mas é o que a gente tem.”

Ela torce para que os estudos avancem e que as novas gerações tenham, cada vez mais, menos efeitos colaterais.

José Hélio Costalunga afirma ter aprendido muito sobre a vida desde que descobriu o vírus.

“Eu entendi, na real, o que um mestre dizia: ‘você só vai aprender a viver quando souber o que é morrer’. A gente só entende a vida quando descobre o que é a morte. Passei a entender que o momento é agora, nem antes nem depois.”

Fonte: BBC

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