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Um grupo formado por representantes da sociedade civil e da comunidade LGBTQIA+ de Lençóis Paulista promoveu um ato nesta segunda-feira (5) e protocolou uma carta de repúdio aos discursos de vereadores da cidade durante a sessão da semana passada.
Durante a reunião onde foi aprovada a lei que institui a Semana Municipal de Combate à Pedofilia, a vereadora Mirna Justo (PSDB), presidente da comissão da Vida, da Família e da Mulher responsável pela elaboração do projeto, relacionou a pedofilia com a educação para sexualidade e identidade de gênero.
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No discurso, a parlamentar cita a ideologia de gênero de uma forma pejorativa como um movimento nas escolas que estaria “incutindo na cabeça das crianças” que a pedofilia é algo normal, como mostra um dos trechos da gravação da sessão.
“Por um lado nós estamos nessa luta contra a pedofilia e por outro lado nós temos visto que isso tem sido incutido na cabeça das crianças como normal através da ideologia de gênero.”
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Depois a vereadora continua essa referência em outro trecho do seu discurso:
“Agora de nada vale nós colocarmos aqui uma lei contra a pedofilia, se lá na escola a criança é convencida de que isso não é errado, ela vai se entregar […] Então o combate é muito difícil e nós, como legisladores, estamos em um ambiente de lei, laico, mas somos cristãos e temos que nos posicionar e tudo isso começa com a ideologia de gênero e essa pequena palavrinha – gênero – quando não preciso dizer que menino é menino e menina é menina, que eu não posso usar o artigo ‘o’ ou ‘a’.”
Ver essa foto no InstagramUma publicação compartilhada por Mirna Justo (@mirnajustooficial)
A vereadora cita também um projeto de lei da Câmara de Vereadores de São Paulo que aborda a questão da economia criativa e, segundo a parlamentar, em um dos princípios traria de forma indireta a questão da ideologia de gênero.
“É isso mesmo que esse povo com cabeça torta tenta fazer entrando na legislação dessa maneira. Então ele [projeto de lei] fala como um dos princípios da economia solidária seria […] garantir os direitos humanos nas relações de equidade e direitos de gênero, raça, etnia, orientação sexual e identidade de gênero. Eles deram um jeitinho de enfiar isso como um dos princípios da economia solidária que não tinha nada a ver, mas aí parece inofensivo. Só que quando a gente vai ver lá no artigo 10, ele coloca que os estabelecimentos de ensino da rede Municipal de Educação deverão abordar de forma interdisciplinar, quer dizer todos os professores terão que falar, sobre os conteúdos dos princípios da economia solidário sendo que um dos princípios é esse; Então veja que de forma sorrateira como eles colocam na nossa legislação e nós precisamos ficar muitos antenados.”
Durante a sua fala, a vereadora fez uso ainda de um vídeo de um padre de Divinópolis (MG) que afirmou em uma missa que as escolas da cidade estariam pervertendo as crianças e adolescentes. Ele cita uma palestra e uma cartilha que trariam temas como identidade de gênero, sexualidade e formas de amor, usadas por uma escola particular da cidade, e apresentou a palestrante, uma sexóloga, como uma “pervertida moral”. O religioso foi orientado pela Diocese a se retratar após as declarações no fim do mês passado.
O G1 tentou contato com a vereadora Mirna Justo, mas ela não atendeu nossas ligações e nem respondeu às mensagens.
O trecho do discurso da vereadora foi postado no perfil da parlamentar no Instagram, onde tem mais de 1,5 mil visualizações, e também viralizou em outros canais. Vários internautas se posicionaram, a maioria com comentários de crítica ao posicionamento da vereadora.
“Discurso desrespeitoso, vergonhoso. Um total desserviço para a população lençoense”, afirmou uma internauta.
“Não tem conhecimento algum sobre o assunto, apenas reprodução de fake news. Parabéns pelo desserviço”, disse outro.
“Esse tipo de discurso é um desserviço pros direitos humanos, fora que mata pessoas, é crime”, diz uma das mensagens deixadas na postagem da vereadora.
A Câmara de Vereadores de Lençóis Paulista publicou uma nota em seu perfil nas redes sociais onde esclarece que “o posicionamento de cada vereador não reflete a opinião da instituição. Sendo assim, esta casa de leis reitera ser contra qualquer forma de preconceito e discriminação, seja de raça, religião, condição social e orientação sexual.”
O G1 conversou com o presidente da Câmara, o vereador Jucimário Cerqueira dos Santos, e ele informou ainda que o caso será levado para análise da Comissão de Ética do legislativo municipal.
Na sessão da Câmara desta segunda-feira (5), Mirna Justo voltou a ocupar a tribuna para dizer que “em momento algum quis desrespeitar” as pessoas, mas que tem suas posições pessoais, para as quais também exige respeito.
“Tenho amigos e parentes homossexuais, eu respeito vocês e quero que me respeitem. Em momento algum expressei aqui [na Tribuna] as palavras homossexual, homossexualidade, LGBT. Eu prezo a diversidade e tenho o direito de pensar diferente, eu sou católica, mas temos aqui evangélicos e pessoas que não praticam qualquer fé. O psicólogo [Rodrigo Caetano] acha que [educação sexual] deve ser ensinado na escola e eu entendo que compete à família, é minha posição, minha forma de pensar, que é como pensam as pessoas que votaram em mim. Só peço que respeitem minha posição”, disse a vereadora.
Carta de repúdio
Na carta aberta aos vereadores, o grupo intitulado Organização Popular de Lençóis Paulista manifestou repúdio às falas da vereadora, que recebeu apoio de outros parlamentares durante a sessão com discursos semelhantes. (Confira o conteúdo da carta na íntegra).
“Falsas associações como as feitas pelos vereadores nascem da falta de informação e da tentativa de justificar um preconceito enraizado de que as pessoas LGBT+ querem destruir famílias, corromper crianças e converter todos em seres promíscuos e degenerados. Isso não é verdade”, diz o texto que recebeu mais de 200 assinaturas e foi protocolado na sessão desta segunda-feira (5).
Um dos organizadores do protesto, o psicólogo Rodrigo Caetano, a mobilização é para mostrar e conscientizar que esse tipo de discurso pode gerar consequências que colocam em risco a vida das pessoas da comunidade LGBTQIA+.
“Essas falam propiciam violência. Todo o discurso enviesado, seja feito em um palanque, por pessoas que têm voz pública, precisa ser muito bem dosada, ela num pode ser embasada em fake news, em padres sensacionalistas, sem embasamento científico. O vereador tem que no mínimo estudar o que ele vai falar naquela semana.”
Educação sexual e respeito à diversidade
A professora e psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi, que é livre-docente em Educação Sexual, Inclusão e Desenvolvimento Humano e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Sexualidade, Educação e Cultura da Unesp de Bauru, explica que conceito de sexualidade é muito amplo e muitas vezes educação sexual é mal compreendida por restringir esse tema apenas às práticas sexuais.
“Quando a gente fala da educação para sexualidade, que é o termo presente no documento na Unesco, não é a educação para o sexo, a sexualidade é um conceito amplo. A gente trabalha a questão do afeto, do respeito ao próximo, da empatia, o respeito à diversidade humana, porque as pessoas são diferentes. É uma coisa tão mais ampla e a gente fica presa a essa questão tabu que vai estimular a criança ao sexo”, afirma.
A especialista também destaca o papel de prevenção da educação das crianças e adolescentes nos casos de abuso sexual e outros problemas relacionados à sexualidade como as DSTs e a gravidez precoce.
“A educação sexual para criança e o adolescente na escola é no sentido preventivo, a gente faz educação sexual na escola porque criança e adolescente quando bem informados, eles são menos vulneráveis. Hoje a pedofilia, abuso e a violência chegam muito mais fácil às crianças e a criança bem informada precisa saber distinguir o que a violência sexual, saber a diferença entre afeto e relacionamento abusivo.”
“A educação sexual vem nesse sentido, porque uma criança pequena que sofre um abuso, ela sabe contar isso. Ela tem que saber, por exemplo, nomear as partes do corpo para que ela possa contar se alguém mexeu com ela e com que parte do corpo. É muito confuso para criança e o adolescente até entender que algo que ela está passando pode ser uma violência, já que na maioria dos casos é uma pessoa em quem ela confia, uma pessoa do círculo familiar, que exerce uma relação de poder sobre a criança. Então é muito importante que a gente trabalhe essas questões e quem vai trabalhar? É um educador.
Ideologia de gênero
Segundo o Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da Universidade de Brasília (UnB), o termo “ideologia de gênero” surgiu no final da década de 1990 no âmbito do Conselho Pontifício para a Família, da Congregação para a Doutrina da Fé, antigamente conhecida como Santa Inquisição Romana e Universal, uma ala conservadora da Igreja Católica.
O termo não tem reconhecimento no mundo acadêmico e normalmente é utilizado por grupos mais conservadores para atacar a questão da diversidade sexual.
“Essa história de ideologia de gênero como é apresentada não existe, gênero todo mundo tem, é como eu me vejo. Em me vejo mulher, mas o que é ser homem e o que é ser mulher? Cada cultura tem uma representação social do que é ser homem e o que é ser mulher, mas é um quadradinho tão pequeno que as vezes a pessoa não se encaixa nessa mulher que é o padrão naquela sociedade. E o que a gente lida hoje é com uma flexibilização dessa dualidade que existe “a” mulher e “o” homem e que a gente tem que se encaixar nesse padrão. E no fundo quem é um pouco diferente disso ou muito diferente sofre muito”, afirma a professora.
Fonte: G1 – Foto: Organização Popular de Lençóis Paulista / Divulgação