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Passadas décadas de pesquisas sobre o autismo, cientistas ainda não sabem precisar ao certo o que causa o transtorno, nem chegaram a um consenso sobre as melhores formas de tratá-lo — circunstâncias que costumam deixar pais de crianças do espectro autista inseguros e vulneráveis a armadilhas.
Alguns estudos recentes, porém, trazem novas pistas e ajudam a derrubar mitos comumente relacionados ao Transtorno do Espectro Autista (TEA).
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A BBC News Brasil conversou com o pesquisador americano Charles Nelson, professor de Pediatria e Neurociência na Universidade Harvard e responsável por um laboratório do Hospital Infantil de Boston que pesquisa desenvolvimento cognitivo de crianças, inclusive as que estão no espectro autista.
Nelson, que esteve em São Paulo em janeiro para participar em um estudo (ainda em curso) sobre desenvolvimento de crianças em abrigos paulistas, investiga o autismo há 12 anos e explica onde a ciência tem avançado no entendimento do TEA — e onde os avanços têm sido lentos.
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O autismo não é um transtorno único, mas sim um espectro de transtornos que podem variar em intensidade e em características, a depender de cada indivíduo. Em geral, essas características se manifestam em dificuldades no convívio social, comportamento repetitivo e, em alguns casos, ansiedade e transtorno de deficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Estima-se, globalmente, que 1 a cada 58 crianças esteja no Transtorno do Espectro Autista — designação que, desde 2013, é usada para abrigar todos os problemas relacionados ao autismo.
O mito persistente de a ‘vacina tríplice viral causar autismo’
Uma das descobertas recentes de um estudo coescrito por Charles Nelson ajuda a derrubar um mito que persiste desde os anos 1990: o de que a vacina MMR (no Brasil, a tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola) causa autismo.
Esse mito é sustentado por um estudo de 1998, que posteriormente foi desacreditado e seu autor, julgado “inapto” para o exercício da medicina. A despeito disso, muitas pessoas deixaram de aplicar a tríplice viral em seus filhos por medo do autismo.
Nos últimos anos, porém, Nelson e seus colegas começaram a estudar bebês a partir de três meses cujos irmãos mais velhos são do espectro autista (motivo pelo qual esses bebês têm mais risco de também serem do espectro).
E, por meio de eletroencefalogramas, eles perceberam que, a partir dos três meses, já conseguiam identificar padrões no cérebro desses bebês de alto risco, ajudando a prever se eles podem desenvolver características do Transtorno do Espectro Autista um pouco mais tarde.
O fato de esses sinais poderem ser observados a partir de três meses de vida, diz Nelson, indica que o autismo ocorre muito antes dos 12 meses, que é quando as crianças costumam tomar a vacina da tríplice viral (o pesquisador supõe que o transtorno comece a se desenvolver no terceiro trimestre de gestação do feto, quando o cérebro do feto começa a formar neurônios e conexões, embora isso não esteja ainda comprovado).
“O fato de vermos (sinais do autismo) tão cedo significa que as vacinas não têm um papel”, explica Nelson à BBC News Brasil.
“Mesmo antes do nosso trabalho, não havia dados que sustentavam [o elo causal entre autismo e vacina]. Mas as pessoas ainda assim não acreditavam”, prossegue.
“Quando você tem um filho com autismo e ninguém consegue explicar por que, você sai em busca de causas, e busca causas simples. Os pais frequentemente culpam a si mesmos primeiro; ‘foi algo que fiz durante a gravidez’. E as vacinas acabaram sendo algo conveniente a que atribuir a culpa. Mas não havia nenhuma base para isso.”
Estamos mais perto do diagnóstico precoce?
O trabalho de Nelson pode ajudar, futuramente, no diagnóstico precoce do autismo, mas por enquanto os dados de seu laboratório se restringem a bebês em cujas famílias já foi manifestado o autismo. Agora, ele planeja testar uma amostra mais ampla, de bebês da população em geral.
“Nossos estudos são os maiores do mundo, mas são pequenos, com algumas centenas de crianças. Precisamos de milhares delas e precisamos ter certeza de que [o que está sendo observado no estudo] se trata de autismo, e não de um desenvolvimento atípico do cérebro”, explica o médico.
“As implicações para o diagnóstico cedo são profundas, mas ainda não estamos no ponto de usar [o estudo] para o diagnóstico precoce. Ainda levará alguns anos até que cheguemos nisso.”
Por enquanto, diz ele, especialistas experientes conseguem diagnosticar o TEA quando a criança tem por volta dos 2 anos e, em alguns casos específicos, aos 18 meses.
Entre os sinais observados estão, por exemplo, se as crianças não se viram ao escutar seus próprios nomes, se rejeitam o contato visual e se têm desenvolvimento motor atípico.
“E por que isso [o diagnóstico precoce] importa? É que quanto mais cedo se diagnostica, mais cedo se pode intervir. E sabemos que, com a intervenção precoce, as crianças têm resultados muito melhores”, relata Nelson.
O mito das ‘mães geladeira’ e as possíveis causas do autismo
Muitas mães ainda se culpam quando seus filhos recebem o diagnóstico de TEA, acreditando que algo que fizeram durante ou depois da gravidez causou o autismo.
Nada disso se sustenta pela ciência atual, mas tem embasamento em uma antiga crença médica surgida na década de 1940: a da “mãe geladeira”, de que mães frias e não suficientemente amorosas provocavam autismo em seus filhos.
“Nunca houve qualquer evidência disso, mas mesmo assim as pessoas falavam a respeito. Culpa-se a mãe por tudo”, afirma Nelson.
Então, o que se sabe das possíveis causas do autismo?
Na grande maioria dos casos, não é possível ter certeza absoluta, diz Nelson. Mas, com base nas pesquisas mais recentes, “a maioria de nós [pesquisadores do assunto] acredita que se trate de uma vulnerabilidade genética com um gatilho ambiental. E sabemos que é um distúrbio do desenvolvimento do cérebro que aparece muito cedo. Então a pergunta é: o que faz o cérebro ir nessa direção?”
Essa pergunta permanece, até agora, sem uma resposta definitiva, segundo ele.
O que se acredita é que o fato de muitas crianças no TEA terem comportamentos repetitivos e sensibilidade a estímulos sensoriais (por exemplo, à luz ou a ruídos) se deva à existência de muitas conexões de curto alcance nas áreas visuais do cérebro e, ao mesmo tempo, a poucas conexões de longo alcance — as quais ajudam na percepção social, que é justamente a área em que crianças do espectro costumam ter dificuldades.
“Isso explica a dificuldade de fazer contato visual e de responder a um mundo social”, diz Nelson. “Mas não sabemos por que há tão poucas conexões de longo alcance e tantas de pequeno alcance. E daí voltamos para se [é culpa da] genética ou do ambiente. O que é frustrante para os pais, porque já foram gastos bilhões de dólares em pesquisas e não estamos mais próximos de descobrir as causas ou um tratamento.”
Ao mesmo tempo, colocar as crianças em situações de negligência aparenta ser um desses gatilhos para o autismo, caso já haja uma propensão prévia a isso. É o que demonstra outra pesquisa da qual Nelson participa: uma que analisa, há décadas, crianças romenas que viviam em terríveis condições dentro de orfanatos estatais nos anos 1980 e 90, sem interação social produtiva com adultos e em situação de abandono.
Nesse grupo específico de crianças, a incidência de autismo variava, dependendo do estudo, de 5% a 10% — muitíssimo acima da incidência na população global em geral.
“O que tememos é que, a partir disso, as pessoas concluam que ‘não ter mãe causa autismo’. E não acho que seja esse o caso”, explica Nelson. “Acho que tem a ver com a privação social (e seu impacto em) cérebros negligenciados e com alguma vulnerabilidade.”
Os mitos (e perigos) das terapias alternativas
Na ausência de uma causa clara para o autismo e de intervenções que nem sempre dão o resultado desejado, pais de crianças no espectro muitas vezes acabam recorrendo a terapias “alternativas” — de dietas especiais a curas “milagrosas” vendidas na internet.
O problema é que, além de não terem comprovação científica, algumas delas são extremamente perigosas.
É o caso do chamado MMS, substância divulgada internacionalmente como cura para crianças autistas, se ingerida oralmente. Mas o MMS é, na prática, dióxido de cloro — químico alvejante usado em produtos de limpeza que, de tão corrosivo, só pode ser manipulado por pessoas que estejam vestindo equipamento de proteção.
Desde 2018, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) proíbe sua fabricação e comercialização no Brasil, devido aos riscos que o produto causa ao ser ingerido: de vômito e diarreia até danos à garganta e problemas respiratórios que podem ser fatais.
“[Alegam-se] propriedades terapêuticas para uma substância química que não tem qualquer comprovação de segurança para uso em humanos”, diz a Anvisa em comunicado de 2019.
“O dióxido de cloro não tem aprovação como medicamento em nenhum lugar do mundo. Sua ingestão traz riscos imediatos e a longo prazo para os pacientes, principalmente as crianças.”
Até o momento, tampouco há comprovação científica de que outras terapias alternativas que vêm sendo usadas ajudem pacientes com autismo. Elas incluem dietas específicas (algumas das quais ajudam pessoas com epilepsia a reduzir suas convulsões) sem glúten ou caseína, ou mesmo transplante de células-tronco. “[Este último] Não só não funciona, como é um procedimento caro e arriscado”, afirma Nelson.
Existe uma corrida de indústrias farmacêuticas na busca por medicamentos, mas o médico americano também é cético quanto a isso. “A controvérsia é que, no autismo, o que exatamente você vai tratar com as drogas? É um distúrbio complexo. Medicamentos podem reduzir os sintomas, como deixar [pacientes] menos ansiosos ou mais sociáveis, mas não estão tratando o autismo em si.”
Um medicamento recente usa o hormônio ocitocina em sprays nasais na tentativa de aumentar a sociabilidade de pessoas do espectro autista, com resultados aparentemente positivos. A questão é que não se sabe ainda os efeitos colaterais disso, uma vez que a dose necessária de ocitocina tende a aumentar para fazer efeito.
Os pontos fortes das crianças no TEA
O que se sabe, por enquanto, é que intervenções psicológicas precoces ajudam, em boa parte dos casos, as crianças no TEA a se desenvolverem e a melhorarem suas habilidades sociais, embora ainda persista a dúvida de por que algumas crianças respondem tão bem a intervenções comportamentais (por exemplo, que estimulam a criança a fazer contato visual e a entender nuances da interação social), e outras, nem tanto.
Nelson explica que, em cerca de 10% dos casos nos EUA, crianças que são diagnosticadas em seus primeiros anos de vida — e por isso recebem acompanhamento desde cedo — acabam saindo do espectro autista.
Ao mesmo tempo, diz o médico, “muitas pessoas dizem que focamos demais nos deficits e não tanto nas fortalezas” das pessoas no espectro autista.
Um dos casos recentes que mais chamam a atenção é o da jovem ativista climática sueca Greta Thunberg, diagnosticada com a síndrome de Asperger (que atualmente é parte do espectro autista) e que demonstrou grande habilidade em galvanizar o público em torno de sua causa.
“Os interesses restritos (das pessoas com TEA) podem se tornar seu ponto forte”, diz Nelson. “Essas pessoas às vezes têm habilidades excepcionais e memórias incríveis. As que são boas com números podem se tornar matemáticas brilhantes, por exemplo.”
Uma possibilidade, diz ele, é voltar as atenções para intervenções que estimulem esses pontos fortes — algo que ainda não é feito nem estudado em grande escala com crianças do espectro autista.
Fonte: BBC