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A infância, entre idas e vindas ao bairro rural de Apuãs, sempre me colocou em contato com a natureza. Nadar em rios e colher frutas diretamente de suas árvores eram rotinas semanais.
Olhava para os rios e passava horas apreciando os peixes a nadar em suas correntezas. Voltava para a cidade e enfrentava as aulas no Pedretti Neto, escola vizinha a um rio, e acompanhava como um enorme cano jogava detritos da escola diretamente nas águas. Isso, em meados dos anos 1980.
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Aquele rio era famoso, chamávamos ele, de forma pejorativa, como o Rio “Bost****” (desculpe os asteriscos, mas o nome é feio). O lugar fedia. Dia sim, dia não, o odor fétido invadia as salas de aula.
Era um rio que me dava vergonha e asco, pois conhecia lugares lindos, onde até pequenos camarões de água doce se multiplicavam entre pés de agrião selvagem. Passou a minha juventude, chegou a meia idade, e eu acreditava, realmente, que aquele rio, que desaguava no Rio Lavapés, nunca teria jeito, e que sua poluição já estava tão infiltrada que dificilmente haveria vida naquele lugar novamente.
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Dias desses, descendo a Rua Rafael Sampaio, percebi uma movimentação de pessoas sobre a ponte do Lavapés. Havia ali umas dez pessoas olhando em direção às águas. Me aproximei e vi crianças, que moram ao lado do rio, adentrando suas águas, brincando com cordas e uma bola.
Pensei comigo, onde estão as mães dessas crianças, que deixam elas brincarem nessa água poluída? Percebi uma senhora sentada em um banco, observando seus filhos brincar. Foi quando percebi que os olhos da plateia não se dirigiam às crianças, eles estavam centrados em um ponto próximo à ponte, em sua margem.
Dedos apontavam para baixo e corriam de um lado para outro, foquei minha visão para onde estavam apontando e percebi, havia peixes naquelas águas. As crianças, na verdade, brincavam em um leito de rio, praticamente limpo, onde a vida havia retornado e nadava formando um verdadeiro corpo de baile de peixes.
Tinham diversos tamanhos, famílias inteiras de peixes ocupavam aquelas águas e derrubavam meu mito e preconceito, de que naquele local eu nunca veria manifestação de vida, apenas sujeira.
Onde eu enxergava um balé, percebi que algumas pessoas viam um verdadeiro futebol com torcida. Risos e comentários ocupavam aquele ambiente, me lembrei da infância, dos camarões e do agrião selvagem. Confesso, fiquei emocionado e senti a necessidade de apresentar aquilo tudo aos meus filhos.
Fui para a casa e ao retornar ao rio com as crianças, a tristeza tomou conta, e constatei uma tese que carrego comigo desde a adolescência, o problema do mundo são as pessoas. Não todas, nesse caso posso dizer, uma entre dez.
A plateia, de dez pessoas, havia sido substituída por um indivíduo de avental, descarregando o lixo de um tambor pequeno nas águas. Falei para ele sobre o crime que estava cometendo, que naquelas águas havia vida e ele me respondeu:
“E essa vida adora comer esse lixo” – Olhei para as águas e havia embalagens plásticas, papel, e outra infinidade de resíduos, que demorara milhares de anos para sumir do ambiente.
Meus filhos não conseguiram ver os peixes, eles se esconderam. Os peixes não se importaram com as crianças, que antes brincavam a poucos metros, mas aquele lixo havia espantado a vida de suas águas.
Os peixes continuam lá, vez ou outra passo por aquele local, e posso assistir aquele balé, mas quem garante que esse rio, hoje limpo, não se tornará de novo o pejorativo “Rio Bost****”, devido a pessoas, como o porcalhão do tambor?
**Renato Fernandes é jornalista, escritor e artista plástico.