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Seis beliches em um quarto sem espaço de circulação, queixas de má alimentação, risco de contágio da Covid-19, banheiros com canos expostos e entulhos espalhados por toda a área. É em instalações como essa que 40 caminhoneiros brasileiros estão alojados enquanto retidos no Chile por conta das restrições de circulação impostas pelo governo local no combate à pandemia do coronavírus. Os profissionais foram contratados pela Mistral Tlog, empresa de transportes, para levar os veículos a Tacna, no Peru. Porém, a viagem, que seria de duas semanas, já dura 43 dias e sem previsão de retorno.
O impasse se deve à falta de testes para a Covid-19 dos motoristas. Eles deixaram o Brasil no dia 10 de março e foram barrados 13 dias depois em Arica, no Chile, cidade que faz divisa com o Peru. Impedidos de entrar em território peruano, os caminhões foram levados ao destino final por uma empresa local. E o grupo de brasileiros está retido no Chile desde então.
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Os caminhoneiros foram submetidos a testes de Covid-19 e dois tiveram resultado positivo. Eles então foram transportados pelas autoridades chilenas para um hotel, onde ficaram 11 dias em isolamento. Ao final desse período confinado, os caminhoneiros deveriam ter ido a Santiago esperar pela liberação para voltar ao Brasil.
No entanto, a empresa optou por transportar o grupo para Los Andes, cidade que fica a 80 quilômetros de Santiago, pois na capital chilena há mais restrições de mobilidade por conta da pandemia. A Mistral Tlog alugou um alojamento para os trabalhadores no local, com instalações precárias e restrições de saída.
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“É desumano o que a gente está vivendo. Eu nunca passei por uma situação como essa. Estamos mais de dez pessoas num quarto todo sujo, desorganizado. O banheiro é um lixo. O dono da pensão nos trata muito mal. Já colocaram grades nos portões para ninguém sair e agora não podemos fazer nada. Nem o fogão a gente pode usar. Se usar tem de pagar 1.500 pesos (cerca de R$ 12)”, protestou um dos caminhoneiros que pediu para não ter a identidade revelada.
A condição imposta para a liberação dos brasileiros é a apresentação de teste negativo para Covid-19. Após a obtenção do exame, os caminhoneiros têm três dias para deixar o país. No entanto, na última semana, um novo caso suspeito surgiu no alojamento de Los Andes. O exame para confirmar ainda não foi feito, mas o motorista foi isolado em um quarto nos fundos da pousada.
Um novo caso positivo para coronavírus pode postergar ainda mais o retorno dos caminhoneiros ao Brasil. A vigilância sanitária de Los Andes chegou a fiscalizar o local recentemente e os motoristas disseram que tiveram de se esconder.
“O dono da pousada colocou a gente em um contêiner para que a fiscalização não pegasse a gente. Olha só que situação. Agora tem de ficar correndo e escondendo nos lugares, mas a gente faz por medo. Eu não sei como funciona. Eu estou em outro país. Não entendo o que eles falam. Não sei como funciona a lei aqui. Tenho medo de pegar a doença, de sair na rua, de ser preso. Tenho medo até de tétano nesse banheiro”.
Procurada pela reportagem, a direção da Mistral Tlog reconhece que o local não oferece qualidade, mas se isenta de culpa.
“É uma situação complicada e nós estamos nas mãos do consulado e das autoridades chilenas. Eu vi as fotos do local e não digo que são condições desumanas, mas é um local desconfortável. Só que foi uma opção deles. Se eu soubesse que era tão simples, eu não tomaria essa ação”, disse Márcio Tadeu Duarte Silva, diretor comercial da empresa.
A versão do diretor é refutada pelos caminhoneiros. Em contato com a reportagem, muitos relataram que estão em sua primeira viagem para o exterior e que desconheciam o local. O grupo também reclama do desamparo durante o período.
Para este trabalho, cada motorista receberia R$ 0,45 por quilômetro rodado, o que daria em torno de R$ 2 mil pelo trabalho de 15 dias. Porém, o pagamento feito até o momento foi de apenas 50%. Sem o valor total do trabalho e fora de casa há 40 dias sem renda, novos problemas surgiram.
“Eles mandam 20, 25 mil pesos (em torno de R$ 199) por semana. Mas este dinheiro não dá para fazer nada aqui. Eu tenho quatro filhos, estou com aluguel, energia e água atrasados. Eu peguei este trabalho para ter uma renda extra, mas estou perdendo tudo”, desabafou outro motorista ouvido pela reportagem.
Em relação ao abandono, Duarte disse que a Mistral Tlog repassou para as famílias dos caminhoneiros R$ 500, valor que não soluciona os problemas. O empresário também se defendeu e disse que repassa cerca de 35 mil pesos aos motoristas (10 a 15 mil a mais que o relatado pelos trabalhadores), além do pagamento da pousada.
Sem esperança de que uma solução seja encontrada, os caminhoneiros esperam alguma atitude do governo brasileiro para que eles possam ser resgatados. Seis motoristas já se arriscaram em caronas e conseguiram retornar ao Brasil. A medida foi criticada por Márcio, que garante buscar uma alternativa.
“Eu não posso trazer um e deixar todos os outros lá. Eu tentei buscar eles de ônibus, mas o governo argentino demorou 15 dias para responder que não aceitaria. Esse é um problema diplomático e que precisa ser resolvido pelas autoridades. Pedi ajuda do cônsul porque eu, como empresa, não consigo comprar todas as passagens”, afirmou.
Por meio de nota, o Ministério das Relações Exteriores disse que está ciente da situação. “O Itamaraty acompanha atentamente a situação e tem participado de reuniões com o setor brasileiro de transporte de cargas, com outros órgãos governamentais e com autoridades dos países vizinhos para buscar soluções às novas exigências sanitárias argentinas, chilenas e peruanas”, diz o texto.
De acordo com o ministério, a exigência de apresentação de teste PCR negativo em 72 horas antes da chegada à fronteira chilena foi flexibilizada. “A nova medida chilena, menos estrita, determina a realização de PCR 72 horas antes da saída do caminhão da fronteira brasileira, o que confere maior prazo para as providências necessárias por parte dos motoristas e das empresas transportadoras”, afirma a nota.
Fonte: Época